quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Trabalho de parto

Li uma notícia no jornal há uns 4 meses em que uma mulher relatava como foi seu parto. E que o fez por recomendação do obstetra, o mais cedo possível, para que não esquecesse.

Eu estou fazendo isso não por recomendação do obstetra, o mesmo da reportagem, mas por não conseguir dar conta das coisas que estão na minha cabeça e não ter com quem conversar.

Marina nasceu antes da hora: não planejava engravidar ano passado e Heitor não pensava em ser pai nesse período. Seu parto também adiantou em duas semanas.
Mas a filha Marina custou um cadinho a chegar. Até o fim de semana antes de se nascimento não havíamos conseguido conversar sério sobre seu nome e seu sobrenome, que foi definido no cartório. Eu mesma só “batizei”minha filha no banheiro da clínica enquanto aguardava fazer minha última ultrassonografia. Precisava saber se tudo estava bem com minha menina após o médico realizar uma versão cefálica externa. Minha filha veio ao mundo cheia de personalidade, negando padrões, uma semana depois dessa manobra.

Pois bem. Depois da manobra algo mudou em mim. Nasci mãe. Até então minha gravidez era um fenômeno biológico acontecendo comigo. O sujeito filha não existia concretamente para mim. Depois disso Marina nasceu pra mim como um sujeito independente, com quem eu deveria construir uma relação.

Passei a pensar em seu nascimento e em como as coisas, eu, Heitor, a casa, não estavam prontas pra chegada dela. Mas pensava também que tinha três semanas pra preparar a casa e a cabeça pra chegada da minha filha.

Na segunda-feira conversei com meu chefe sobre antecipar minha licença e fui bem lenta pro pilates naquele dia. Estava esquisita, com a cabeça em outro lugar, mas não sabia que já estava pra parir.

Na terça a acupuntura também foi pesada e tive uma conversa estranha com a Bel, colega de trabalho que entrou na repartição enquanto eu estivesse fora. Acho que no fundo eu sabia que não iria ao trabalho na quarta-feira.

À noite, ainda bastante cansada, fui visitar uma tia e fiquei lá até as 22:30. Cheguei em casa, tomei banho e deitei. Heitor tinha acabado de ler o livro sobre parto que lhe dei.

Quando consegui cochilar, virei pro lado e senti uma cólica forte. Minha bolsa estourou. Liguei pro obstetra e marcamos de ir ao hospital às 6h, caso não entrasse em trabalho de parto.

Entrei em pânico. Como assim, parir amanhã cedo?!!! Minha mala não tava pronta, o quarto dela tava sem cortina, a cômoda sem puxador... Saí andando feito louca pela casa, tremendo muito, apavorada com o que me esperava na manhã seguinte. Lembrei da minha primeira transa. Eu tremia do mesmo jeito, um frio que vem de dentro.

Comecei a pensar nos hormônios que eu tava inibindo com esse tanto de adrenalina e passei a questionar minha capacidade de passar por essa experiência. Comecei a pensar que talvez a cesária não fosse tão ruim assim e que eu não era mulher pruma tarefa como o parto natural.

Só consegui deitar depois de arrumar a mala, o berço, escrever bilhete pro Heitor (coisas a fazer no dia seguinte) e respirar muito. Cochilei um pouco e passei a sentir contrações. Heitor me ajudou a cronometrar. Eu pensava em várias coisas, que tinha que ficar calma pra não atrapalhar o processo, que qualquer mulher fica nervosa nessas horas, que eu tinha que descansar porque o batidão viria e eu precisava de energia.

Até que tudo ficou tão intenso que eu não consegui mais cochilar. Levantei, fui pra internet pesquisar intervalos de contrações. Depois fui pro chuveiro pra ver se o desconforto ficava menor.

Às 6h liguei pro obstetra, que pediu que eu esperasse um pouco mais antes de ir pro hospital. Dei por mim que estava um cado mais calma. Heitor levantou e passamos a nos preparar.

E as contrações reduziram.

Lembro de ter dito ao Heitor que nossa filha nasceria mesmo na quarta, pois com bolsa estourada não tinha outra opção. Fiquei muito aflita com essa perspectiva. Era como ir a um universo paralelo. Eu veria a carinha dela e minha vida nunca mais seria a mesma. Nessa hora vi que digerir o fato de que estava grávida, coisa tão difícil pra mim, parecia quase nada se comparado ao que estava prestes a acontecer.

O dia foi clareando e foi ficando difícil me acalmar. As contrações não aumentaram em frequência, Heitor tinha saído pra comprar absorventes e o irmão dele, médico, há muito estava preocupado pelo fato de eu não ter ido ao hospital pra induzir o parto.

Às 8h,liguei pro médico de novo e ele pediu que eu fosse ao hospital para entrar no soro (induzir o parto). Fiquei arrasada. Me sentia incapaz. Fiquei pensando em coisas que li que associam ao uso de oxitocina sintética. Fiquei obcecada em lembrar quais as consequências para a criança, ficava pensando que talvez meu útero não fosse tão sensível à oxitocina e que se bobeasse à tarde eu seria operada. Me deu pânico pensar que ficaria presa a uma mangueirinha no hospital. Fui ficando triste.

Heitor estava muito, mas muito nervoso, pessoas me ligavam o tempo todo, fui ficando zoada e acabei desligando o celular. Ensimesmei. Às vezes o Heitor me irritava, me chamando a interagir com o mundo, mas eu não queria sair de dentro de mim.
Chegamos ao hospital, eu me contorcendo, Heitor entre nervoso, contente e perdido, sorria pra todo mundo.

Já na suíte de parto, vedo as coisas, equipamentos, instrumentos, me senti um serzinho frágil. Quis colo, mas não dava pra deitar e fiquei escoradinha no Heitor dando graças aos céus que ele tava lá comigo.

A enfermeira disse que eu entraria no soro. Eu pensava que o obstetra me analisaria antes e tinha esperança de dar conta do parto sozinha. Enfim..
Entrei no soro.

As contrações ficaram fortes de novo e eu só respirava. Fui pro chuveiro, deixei o Heitor doido, dando ordens. Foi quando o Dr. Lucas chegou.

Eu só tinha 4 cm de dilatação. Tomei um pito dele, mas na verdade quase não entendi o que ele disse. Só entendi que se não tomasse coragem o parto seria cesária. Foi quando me deu na cabeça que praquilo tudo acabar logo eu teria que largar mão de esperar as coisas acontecerem. Não é à toa que isso se chama trabalho de parto.

A partir daí, a cada contração, em vez de me contrair pra me defender da dor, passei a fazer força. O Lucas já tinha aumentado a quantidade de soro, o que emendou uma contração na outra e, pra aguentar fazer força, em vez de manter uma certa compostura e ficar só respirando, passei a soltar gritos de dor.

Não sei se essa frase é minha ou de uma amiga, mas não há nada mais solitário que a dor. Heitor tava sempre perto, tentava ajudar a me apoiar, massagear, mas nada adiantava. Aquela dor só ia passar depois de eu parir.

Tenho bem marcada na cabeça uma cena em que estava de quatro debaixo do chuveiro e Heitor longe, sentado, olhando, sem poder fazer muito além daquilo pra ajudar.
Lembro de eu falar que não aguentava mais e ele respondendo que àquela altura eu tinha que tratar de parir. A essa altura eu já não pensava mais muita coisa. O quarto já nem existia. Eu só lembro de enxergar coisas num raio de 1 metro de distância de mim. Não tinha posição confortável e aquele tanto de dor me concentrou muito. Me lembro que, quando minha dilatação dobrou, pude entrar na banheira.

A partir daí lembro pouco da dor. Lembro que doía, que as contrações continuavam emendadas, mas a liberdade de movimentos na água, o calor no corpo todo, foram me relaxando de tal maneira que fui abstraindo. Me passavam pela cabeça imagens de um filme com partos na água.

De repente me dei conta que minhas mãos estavam formigando e de que não sentia minhas pernas. Precisei de ajuda pra sair da banheira, tinha a sensação de que não conseguiria andar e que iria desmaiar. Lucas me disse que o pior havia passado e que essa moleza que eu sentia era uma sedação natural, uma espécie de defesa do corpo contra a dor. Meio que não acreditei.

Ele me pediu que sentasse numa cadeira com uma bacia embaixo. Pensei que fosse algum exame que fosse fazer. Mas a enfermeira pediu que o Heitor se sentasse num banquinho atrás de mim e então entendi que era a hora. Quase comecei a rir.

E realmente o pior havia passado. Daí pra frente eu não sentia mais dor, só moleza. As contrações ficaram mais espaçadas e profundas. Parecia que ia virar do avesso de tanta pressão que as contrações faziam pra baixo.

Esse era meu foco. As contrações vinham como espasmos fortes das minhas vísceras e eu não sentia dor. Era quase fácil fazer força.

A dimensão do que tava acontecendo me veio quando toquei a cabecinha dela, ainda dentro do canal. Ela tava tão perto! Pensei que ela tava apertada e que tinha que sair logo. Fiz o máximo de força, mas as contrações iam ficando mais distantes umas das outras.

Quando ela começou a sair de deu um ardor tão diferente, não era exatamente uma dor. Era como se tivessem passado um gel daqueles que aquecem, um sensação forte de estiramento.

Vi que os médicos cochicharam, ouvi o Heitor me dizendo que eu estava indo muito bem. Me deu sono. Não sentia nada, nem alegria, nem medo, nem ansiedade. Era tudo como um filme, não parecia mais ser comigo.

Foi quando os cochichos ficaram sérios e percebi que estava demorando muito. Lucas deu uma mexida nela, pra virar, e senti dor. A última contração veio, foi embora e continuei fazendo força pra neném sair. E ela veio.

Tão pequena, com a cabeça roxa e o corpo branco. Fiquei preocupadíssima. Ela custou um cadinho a chorar. Quis levantar, mas tinha a placenta. Heitor teve que cortar o cordão às pressas. A gente tava tão besta com a cena que isso quase passou batido.
Levantei e fui pra cama ouvindo a neném chorar. Estava enrolada em um lençol verde, daqueles cirúrgicos. Quis dar o peito pra ela, mas ela não pegava. Foi me dando um desespero enorme, me sentia incapaz. Em um momento estavam duas enfermeiras enfiando meu peito na boca dela e segurando sua cabecinha contra meu peito. Senti muita dor.

Ainda estava passada com tudo, meio que não acreditando que havia dado conta de parir uma criança, que não havia fugido dessa tarefa, não pedi anestesia, não fui pra cesária. Sempre foi tão característico eu começar projetos já perdendo, não ter confiança em mim, ficar frustrada e eis que nem passou pela minha cabeça pedir uma anestesia. É como se esse parto fosse o meu também. É como se fosse me redimir de anos sem assumir responsabilidades e desafios, seguindo trilhas já abertas, sempre atrás de alguém.

Nunca me senti tão forte, tão dona de mim, quanto naquele momento. Saí de lá outra pessoa. Cheguei a pensar que calaria a boca do Barba Azul que fica na minha cabeça me puxando pra trás.

Outro dia estava amamentando e pensando em tudo isso, desde a concepção até o nascimento da Marina e penso o tanto que ela foi rejeitada antes de ser quista. Eu sei que no fundo nós queríamos que ela acontecesse, mas tivemos tanto medo em princípio, eu tive tanto medo, que me afastei dela, custei a desenvolver laços.

Passei a maior parte do tempo brigando com o Barba Azul que me impedia de curtir a gravidez. Passamos , eu e Heitor, a maior parte do tempo resolvendo questões que não poderiam seguir adiante e deu receio de que isso pudesse deixar alguma sequela na alma da minha filha. Nessa mesma linha, batizei minha filha no banheiro da clínica, pois pensava que ela precisava de um nome pra encarnar.

A vinda dela nos mobilizou de tal maneira que passamos a cuidar mais um do outro, cuidar mais de nós mesmos e a dar passos concretos a um cotidiano de gente grande, com todos os desafios, frustrações e conquistas no pacote.

Hoje, olhando a casa com móveis, recebendo gente, lembrando das conversas, da forma como planejamos gastos, como pensamos o futuro, vejo que demos passos enormes mesmo que com muita insegurança.

Mas olho pra nós com muito respeito, coisa que não conseguia fazer antes. É uma pena que o Barba Azul siga aparecendo em meus mamilos feridos, mas depois de uma noite bem dormida ele fica tão fraco.

Quando comecei a escrever essa carta o parto não me saía da cabeça. Acho que pra contrapor o Barba Azul, que me trouxe um danado dum “baby blues”. Toda vez que me frustrava com a amamentação, ou olhava pro meu corpo esquisito e dolorido, sentia um asco tão grande de mim que precisava contrapor lembrando da experiência poderosa do parto.

Hoje já não tenho tanta dor e meu corpo volta rapidamente ao normal. Tirando as olheiras quase posso dizer que estou bem. O parto já está cristalizado na minha cabeça e vou aos poucos encontrando luz em outras partes de mim, que não lembranças.
Já consigo dizer que as coisas ruins passam e me preparar para os enormes desafios que vou enfrentar nessa de, de repente, me tornar mãe.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Pílula de memória

Seis anos, tarzan, a árvore, a queda, o barranco, os ralados, o corte na testa, os primos assustados, o sangue no rosto......Vó! Arde, arde, arde. Nossa vó que bom que a senhora chegou. Abraço, que bom. Banho, lavar as feridas? Mas vai arder mais!

Não houve choro que desse jeito! Abraçada a mim foi me levando para dentro. Enquanto me colocava embaixo do chuveiro, me dizia que “mulher e chá você só sabe da força quando coloca em água quente”, aquela frase relacionada à imagem do meu sangue pigmentando a água marcaria pra sempre a minha jovem memória. E o desejo de ser chá preto se instalaria sem remédio em meu coração.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

MACHO DA VEZ - espaço para outros olhares, complementos ou até revanchismos por parte deles


Amor (de) comunista

Tá bom. Já te procurei nos lugares mais esquisitos que você possa imaginar. Numa lata de palmito, debaixo de todas as cobertas da casa, entre as bolsas vazias penduradas na parede. Agora sei que acabou. Mas se tudo se resumisse a acabar e pronto, a vida seria tão simples como a História contada pelos livros mal escritos. O acabar sempre gera a desconfiança, a esperança, a desliusão, o medo, e horas e horas pensando sozinho em qualquer boteco que apareça pela frente. Parece que o casamento é que nem o comunismo. Quase ninguém acredita mais. É, meu bem… só que o muro caiu, o partido escafedeu-se, a União Soviética inteirinha desabou. O Allende morreu, a China mudou de lado. Só a nossa querida Havana continua em pé, com todos seus defeitos e qualidades. Cuba é um casal de velhinhos numa música de Pablo Milanes. Parece impossível até, imaginar que um dia, consigamos construir um mundo mais justo e solidário, aquilo que Marx queria. Talvez um dia consigamos construir um casam… digo comunismo sem aqueles defeitos que se chamaram Stalin ou Chauchescu. Sei que a revolução é difícil. Coisa de loucos. Quase todo mundo vai dizer: é impossível! Mas em matéria de amor, me orgulho de ser um velho comunista.


a imagem é daqui

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Game Over


Agora não adianta mais. Não me venha com domingos de calor que eu já amargurei muitas noites de frio e de chuva. Flores não vão adiantar, aviso logo - é que tive que aguentar muito lixo, pomba, rato. Nem se forem Ipês: muitas árvores podres já desabaram sobre a minha casa. Não, não aceito a luz do sol do horário de verão, tu já me deixou no escuro por demais. Calçadas largas? depois de tanto desviar de gente, de bicho, de lixo (repito), de rato (reitero) e sobretudo de exaustor de padaria soltando vapor quente e gorduroso nos pedestres? não, obrigada. Tu me oferece, a essa altura do jogo da vida, uma nota promissória? depois de me deixar sem nenhum vintém em sábados solitários e ociosos? Não, já disse, não aceito. Veja que festas, cerveja gelada, e sambas também não vão adiantar. Já te dei 3 chances e tu me deixou sem bateria para a 4ª fase.

Desculpe o desabafo. Não me leve a mal. Mas é que cansei de Copan, quero Copacabana.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Quero cheirar fumaça de óleo diesel

Romper. Romper é separar, separar é dividir. Ela rompeu para dividir, dividir a cama, a casa e as expectativas. Rompeu com a sua cidade e, sem pensar duas vezes, lá
estava no Aeroporto de Congonhas, malas e coração na mão. São Paulo até então era Sampa, de Caetano, boates moderninhas, nos programas de tv, Cracolândia, nos cadernos policiais.Não tinha cheiro, textura, luz, sensação. Até então, São Paulo não era.

Cruzou a cidade como um bicho ao descobrir que gaiola tem porta. E porta abre. E foi buzina britadeira viaduto esse diabo de helicóptero na cabeça judeu travesti funcionário engravatado acreditando que tem pressa pregador pregando o cristo que não segue toda essa gente tão nervosa pela rua motoboy a mil por hora aquela massa a mil por hora até criança a mil por hora pelo centro da cidade. Tudo corria frente aos olhos, enquanto os olhos, fascinados, se acostumavam a correr pela paisagem. E a cada dia, ao ganhar uma rua nova, era, pra eles, uma imagem não sabida. E cada imagem era vivência concebida: ia somando, se infiltrando, construíndo.

E se espremeu num vagão da Linha Vermelha, bebeu cerveja olhando as putas da Augusta, cantou um samba e se encontrou como pensava. Quando se viu, já não mirava mais o alto, pois era à frente que estava seu caminho. Em pouco tempo, parecia ser das ruas, aquelas veias latejantes, pulsando vida por onde quer que percorresem.

Romper é separar, separar é dividir. Ela rompeu para dividir, dividir a cama, a casa e as expectativas. Rompeu com a cidade e, sem pensar duas vezes, lá estava no Aeroporto de Congonhas, malas e coração na mão. São Paulo de então era o Cênico, na esquina com o São Pedro, o cheiro da Fagundes, na Liberdade, era o laço com os amigos, a Cracôlandia diante dos olhos marejados. Era vivência, mistura, crescimento. Ali, então, São Paulo era dela. Voltou para sua cidade e a cruzou como um bicho ao descobrir que gaiola tem porta. E porta, depois que se abre, não há mais tranca que consiga segurar.

domingo, 28 de novembro de 2010

Me beija com sua boca podre?

Cheguei e me recebeu aquela senhora gorda. Ela me sufocava naqueles peitos enormes de gerações amamentadas. Algo naquele cheiro me intrigava, me atraía. Não era exatamente bom: misturava urina, óleo queimado, suor, cerveja seca, um quê de esperma velho, como uma lembrança antiga do gozo que deve ter encharcado um dia aquela mulher. Eu queria me afastar, mas, sem nem saber como, cada vez chegava mais perto.

Minha vontade era chegar aos dentes dela, morder o que ela mordia. Mas eu estava ainda bem longe disso. Não entendia sequer sua voz, não decifrava seu rosto. Era estranhamente bonita, me fascinava aquele olhar torto, o mistério, o eterno clima de soslaio. Senti frio, fiquei triste, quis chamar minha mãe. A senhora veio, com aqueles dedos curtos e engordurados, me apertava, e era mais um desafio que uma carícia. Eu queria enfrentar. Queria olhar pra ela, queria não ter medo, queria eu mesma pegar aquele cheiro azedo e virar eu também matrona, meio plínio marcos, meio tia italiana de filme.

Ganhei a rua, eu queria, eu precisava chegar perto daquele submundo que é o mundo, que produz toda a miscelânea de barulhos e gentes, eu precisava me molhar no esgoto, chegar perto da boca do lobo, encará-lo de frente e por fim poder abraçar aqueles peitos grandes, colocar os meus próprios no jogo, merecer o hálito acre no meu cangote. Eu precisava, eu sabia que iria.

Me coloquei então na caminhada, tentei misturar a sola do sapato com a cor do asfalto, tentei engolir todo o cinza do mundo até conseguir ver o cor de rosa por trás do viaduto do chá. Era tudo um esforço para entender o ouvido daquele mulher, a desarmonia jam session com samba. Ela me oprimia com suas palavras, com seu silêncio, me oprimia por minha enorme ignorância e pela memória de amor que marcava todo meu corpo.

Decidi não ter mais vergonha, mais tanta vergonha. Aceitei me misturar, me embebedar, me perder. Mas quando eu chegava com os olhos vidrados de neblina, quando eu finalmente adquiria o tom de pele amarelado da fome e do delírio, ela me olhava e ria. Ria uma risada bonita, gostosa, pegava minha mão com autoridade amorosa de avó e me dizia pra deixar de besteira, esquentar logo a água do café e me achegar no seu cobertor. Eu chorava, eu queria tanto seu calor pleno, sua humanidade doentia, sua solidão.

Eu a amava? Era paixão? Medo?

Um pouco de tudo, até quando percebi, com o corpo roxo, com marcas na cara e a voz embargada, que eu mesma cheirava a suor e cerveja seca. Que eu tinha gozado, comido asfalto, me acostumado com a luz de poste escondendo idéia de lua, engolido e digerido que sonho e cotidiano funcionam como andar de bicicleta no viaduto, que liberdade tem gosto de nada, que a dor é melhor que a ansiedade do vazio. Por fim eu entendi aquele olhar de soslaio: viver é difícil, mas todo dia tem alguma coisa bonita pra deitar o olhar. Viver é toda hora, e há que se guardar água pra regar o que nasce e cresce.

Antes de virar eu também uma senhora gorda quatrocentona, preferi virar tinta colorida e ficar vermelhando um muro qualquer, viver bêbada de movimento e de eternidade, buscar a alegria na travessia do caos.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

(Des)identificação ou ode tucano-paulistana

corpo estendido no chão
calçada, cama, sem estrado
se tá vivo sei lá
deve ter bebido, vacilado
eu não: eu sou trabalhador, pago imposto
e o pedágio
minha casa, financiada,
tá imune de contágio

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ciclo


Aos 13, contava quantos beijos já tinha dado. Aos 30, quantas transas.
Aos 40, quantos amores. Destes, quantos risíveis.
Aos 60, contava quantos beijos já tinha dado – na boca do 4º marido
E contava os dias pra chegar o sábado.

*foto: João Zinclair

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Pimba na gorduchinha

Quando nossa partida começou, ainda nem era maio
Eu toda artilheira, tu cavalo paraguaio
Na primeira etapa, amistosos, até jogamos bonito
Aí fizeste cama de gato, passaste a menina pelos meus gambito!
Mas se o jogo é jogado e só termina quando acaba,
reconsiderei
Saquei que era a zona do agrião mas fui em frente, encarei
Veio o intervalo e te ameacei com o banco;
voltaste jogando bonito, mostrando que não era manco
Então abri o jogo, comi a grama, passei fome,
superaste minha zaga e meteste ali, onde a coruja sempre dorme
Agora, perto dos 45 do segundo, és caixinha de surpresa:
posso correr pro abraço, pendurar a chuteira ou virar freguesa
Tá contigo seguir amarrando o jogo, ou de uma vez arrumar a casa
- pra eu tirar o time de campo, é só me mandar um pombo sem asa

Sem Título

Havia música tocando baixinho. Intermitente. Pterodátilos ganem na cidade. Não. Pastilhas de freio. E descargas, dezenas delas, rugindo como pequenos leões. Uma enxurrada que ameaça desaguar sobre nossas cabeças. É uterino! É como estar no interior de um veículo cujo parabrisa é enxaguado, ensaboado - ruídos atenuados - o pequeno rodo em circuitos ovais, e então, novo enxágue. Nem um respingo sequer sobre a pele. Algo tremendamente relaxante. E chuveiros, e buzinas. O monstro desperta. E ela sorri.

Dorme, ronca, ressoa, assovia, respira; acaricio o seu ventre e ela sorri. E produz um ruído indescritível e delicioso; narinas expelem anti-séptico bucal. E então rostos afagam-se, esfregam-se, penetram-se na produção de um único acorde dissonante dos contrapontos das ambas melodias. Diversas delas. Complementares.
A verdade prestara uma visita naquela noite.

- O pior não foi tê-la perdido - eu dizia, antes disso tudo, a respeito de uma ex- namorada. "Pessoas se sorteiam", pensava: “Mergulhar no abismo é que é para poucos. Tem-se que ter estômago. Você chega ao fundo, pupilas dilatando na escuridão e há aquele filete de luz que corta o intransponível para atingir partículas de poeira. A turbulência dissipa-se, assenta-se, o filete engrossa, o abismo fica maior, e você deve ter fibra para seguir só. E quanto mais a gente disseca isso tudo, mais percebe que não quer voltar. Porque não há porque voltar. Porque voltar não existe, porque não há para onde voltar. E isso dá tanto cagaço quanto redenção, porque, por mais que essa história da perda seja triste pra diabo, não há nada como apanhar as próprias rédeas. É disso que vive o amor”.

Eu quero seguir por aqui por todo o sempre.

-A música segue tocando.
-Sempre te amarei. - Enquanto eu for completo. Quando não estou, moça: É apego.

Vinho, política e olhos claros trazem novas perspectivas ao caminho de volta. Já fazia tempo, - o corpo é mais jovem do que se pensa; o espírito é que anda enferrujado -, é bom estar nas ruas. A cidade é um banco de histórias. Ora belas, ora malditas. E àquelas memoráveis estas vias pavimentadas hão sempre de evocar.

Caminhava, então, fixando novas histórias em velhos detalhes, numa espécie de lambe-lambe mental.

E doíam-me as batatas das pernas.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Espelho


A gente quer é um olho pregado na nossa existência. A gente quer é testemunha, toda ela. Nunca vi um só sujeito desenquadrado. Se o fosse, nem sujeito era. A gente quer é a interpretação da gente mesmo. E não há interpretação sem quem penetre. A gente quer é um passo do lado do nosso, pra lembrar que pegada é bem de quem pisa. O que existe, existe diante o rastro. É por isso que a gente se aglutina, toda ela. Faz amigo, amor, tesão. A gente cria laço. Que laço não amarra, lembra. Lembra, pelo olho alheio, que nosso olho é visto. Se visto, existe.

A gente quer é ver a outra existência e nela enxergar o que tem ou não de nós. Nada somos, senão exclusão. Nele, o que não há de mim, o torna. Por isto, sou. Por não sê-lo, me assiste. E assim o quero. Todos nós. Ah,a gente quer é uma mão que pegue a nossa, pra provar que temos mão pra encostar.

Somos através do outro. O precisamos para nos saber. Por isto, o olho que a gente busca, é olho que admire. Quiçá, seremos o que vêem, admiravelmente.

E assim seguimos, singularmente: emparelhados.

sábado, 18 de setembro de 2010

Epitáfio


Eu escutava toda a sessão de música clássica no rádio aos domingos, com cada pontada de angústia pela sua espera que era como uma vara me partindo em duas. Sua escova de dentes desbotada no estúpido copo da pia me fazia chorar. Você me amava. Estava ali aquela prova concreta: as cerdas gastas de tanta saliva empurrada.

Eu fingia acreditar nas suas teorias baratas, porque era minha única saída. Sua voz, seu argumento, seus óculos, minha única saída para a felicidade.

Você não me beijava a boca, mas passava a mão no meu peito em público como o autêntico macho em domínio. Eu deixava. Eu era sua mesmo. Não por opção, por absoluta falta de escolha. Não tinha mais o que fazer, só aprender a esperar do jeito menos dolorido ou entediante.

E então você: pegava em outros peitos de outras mulheres que deixavam. Deixava que eu chorasse, deixava que eu te falasse de amor. Me deixava ainda em transe e penteava o ralo cabelo que lhe cobre a cabeça grande e saía da cama, da casa, do meu olhar. Dizia que tentava. Dizia isso pra tanta gente que poderia ser engraçado. Mas não era.

Você quase morreu uma quase centena de vezes. Bati o carro no primeiro quase. Ainda não, ainda precisei ouvir outras tantas falsas teorias, outras tantas despedidas. Tanta fome eu passei que comecei a achar que o estado natural da vida era esse.

Vivi em sombra, fazendo da sua imagem minha companhia diária, certeira. Era mais fácil desse jeito, você só falava o que eu queria e me sorria seus lindos dentes com sua barba ruiva no sol, cantava desafinado, me beijava até eu dormir, e só.

Um dia, passou. Estava tão acostumada com sua imagem ali, que me assustei quando ela se foi. Achei simples. Quase solucei. Era muito ar, de repente.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Rouquidão


Hoje estou seca.
Não me corre riso, nem poesia.
Estou árida feito chão sem flor.
Áspera feito espinho sozinho.
Pequena como lagarta no casulo.

Mas acredito que em mim ainda germinam grandes sonhos de borboleta.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

obséquio


se você é assim, risível, mas não quer me fazer rir
e se tens daquele amor, mas não me deixa sentir
vai, danado, pede agora pra sair.
(porque tu, tu não é caveira)

*a imagem é daqui

domingo, 15 de agosto de 2010

Nunca se atrase


Carol me conheceu através de Fulana, amiga em comum de faculdade. Estávamos solteiros naquela época, o que na visão dessa nossa amiga, veio a calhar.

Embora nunca houvesse conversado com a pretendente, já sabia muito de sua vida - não por curiosidade, mas pela paciência dos mil conselhos que recebi de Fulana. Ambos éramos interioranos que agora morávamos na capital, ambos estudávamos na mesma Universidade, tínhamos a mesma idade, e compartilhávamos o demasiado gosto pelas substâncias ilícitas, o que me despertou interesse. Neste mundo transcendental, uma companhia é sempre bem-vinda.

Marcamos o primeiro encontro numa casa de sinuca que fica num bairro nobre da cidade e, portanto, regado de tóxicos e belezas artificiais. Tratamos de chegar pontualmente, mas como ela foi de carro e eu de ônibus, cheguei meia hora atrasado. O problema é que, para pessoas como nós, trinta minutos são uma eternidade e num tempo sem limites a capacidade de entorpercimento é incalculável.

Quando adentrei o bar, num breve reconhecimento da área, identifiquei algumas figuras carimbadas, às quais somos obrigados a expressar familiaridade por meio de apertos de mãos e abraços, mais por cumplicidade que por respeito. Neste processo gastei mais quinze minutos. Quando finalmente cheguei à mesa onde se encontrava Fulana, pessoas diversas e Carol, pude confirmar que de fato a sua beleza condizia com os relatos de nossa amiga, assim como seu comportamento.

Devido aos meus 45 minutos de atraso, até hoje não conheço o estado sóbrio de Carol, mas sei da sua transição para o que podemos chamar de estado futuro mais que perfeito de consciência. Nos apresentamos, trocamos duas frases e, assim que ela ganhou a partida que jogava, furei a ordem de espera, peguei um taco e prometi não dar colher de chá. Na terceira tacada - ainda sem cair bola nenhuma - enquanto examinava a mesa, ela se aproximou, pediu que segurasse o seu taco e dessa forma, me ocupando as duas mãos, me segurou o rosto e dizendo que faria agora pois não gostaria que depois fosse tarde (o que pode ser interpretado como um devaneio ou uma premonição), me lascou um beijo que conseguiu arrancar assobios e a atenção de alguns ali presentes.

No seu hálito era possível identificar o excesso de álcool, e na velocidade dos movimentos, a cocaína. Talvez essa seja a combinação mais excitante que exista, mas que de sua tradição, desperta um charme doentio que finda tantos amores.

Fiquei entusiasmado com a atitude, aproveitei para beber o tempo perdido entre uma tacada e outra, e ao término da partida já estava no processo de alteração da moralidade humana. Na minha perspectiva a noite só viria a melhorar, pois os ingredientes já estavam sendo misturados e a experiência me dizia que dali para o forno seria questão de tempo. Ah! Eu e minha leviana confiança! A noite estava prestes a adquirir o gosto amargo do inesperado.

Carol aumentou a frequência de viagens ao banheiro e o ritmo de seus gestos transparecia a causa. Pra mim aquilo era o precedente de uma tragédia, que não só se consumava frente aos meus olhos, como era inevitável que àquela velocidade o desfecho chegaria logo.

O batom não foi capaz de esconder o branqueamento dos seus lábios e o baixar das pálpebras era iminente, quando resolvi levá-la para o lado de fora a fim de tomar ar e evitar o barulho intenso. Mal demos dois passos e todo o investimento que Carol fez em uísque saiu pelas narinas e brechas no canto da boca tampada inutilmente - tudo isso sob manifestações coletivas em favor de Raul.

Sabia que a partir daquele instante as coisas só tenderiam a piorar, e com a ajuda de Fulana, nós dois pegamos um táxi em direção à casa de nossa amiga – que era mais perto. Com dificuldade pra subir as escadas, abri a porta com ela desfalecida em minhas costas e, empurrando a porta do quarto com a perna, soltei-a sobre a cama de Fulana. Por um momento contemplei sua beleza impregnada da decadência do estilo de vida que resolvera adotar. Sua calça estava respingada de vômito e os tênis inundados, e balbuciando alguma coisa os retirei com o asco natural da situação.

Aquilo se tornou um momento inédito, mesclado de insatisfação e surpresa, afinal ali estava uma moça linda em condição morimbunda, respirando com dificuldade, suja e com mal cheiro. Com certeza ela levantaria na tarde seguinte, mas havia passado muito perto da dose final naquela noite. E ali estava eu, que longe de demonstrar qualquer alteração de consciência ou espírito, contemplativo abri o guarda-roupa, o armarinho do banheiro, a geladeira e o fogão, e não encontrei nada além de dipirona.

Fulana havia me dito que estava dando um tempo. Fiquei espantado, pois havia imaginado que ao menos um femproporex encontraria ali ao lado da garrafa de Absolut, que me aguardava ansiosa. Sentei no sofá da sala, peguei um copo semi-limpo que estava no seu braço, convidei a vodka a sentar-se comigo e liguei a televisão.

Contei-lhe toda a história e ela consentiu sobre o meu ressentimento em relação a Carol. Quando meu copo esvaziou, no auge da embriaguez, levantei. Mas antes de ir embora, deixei um recado que dizia: “Desculpe-me pelo atraso.”

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Conto necessário

Não sei exatamente qual foi a cara que fiz quando te vi. Ou melhor, quando te revi. Mais tarde, quando contei do reencontro para a Ana, e ela me perguntou qual havia sido minha reação ali na hora, não tive resposta.
Fiquei tentando reviver a cena, tentei descrever para mim mesma o que senti naquele momento, como meu corpo reagiu, se com tensão ou com desejo, ou com os dois. Queria eu poder ver minha própria cara naquele exato momento e quem sabe conseguir desvendar por meio dos meus olhos, minha pele, minha boca o que você ainda provocava em mim. Mas, a verdade é que como qualquer situação limite, não me lembro do que gostaria e deveria lembrar. Lembro apenas de alguns detalhes sem importância. Do desenho sem sentido que o vinho, já seco, fazia nas paredes da taça a minha frente, do contorno da mesa em madeira escura, da meia calça preta rasgada da menina que saia pela porta.
Ela saía e você entrava. E então eu me lembro apenas que te vi e que abaixei os olhos. Era você. Te vi, mas não queria te ver. Não podia te ver. Mas te vi. E os milésimos de segundo em que te vi foram suficientes para ver que você continuava com os mesmos olhos afiados, o mesmo ar de mistério. Que ainda mantinha o andar de soldado, a boca brilhante, convidativa. Tudo isso eu pensei ali talvez, naqueles milésimos de segundo. Não precisava de muito tempo para me lembrar do essencial de você, é verdade, ainda que essas memórias estivessem bem enterradas em algum lugar. E nem eu sabia disso, soube ali, ao abaixar a cabeça e permanecer olhando para a mesa bege com um contorno de madeira escura. E naquele momento tive medo de perder, mais uma vez, o controle.

***
Esperei alguns segundos e levantei a cabeça. Você comprava cigarros. Estava sozinho. Agora me lembro de que tinha um olhar cansado. Um ar cansado. E aí naquele momento, me vi deitada com você na cama, você de costas para mim apoiando a cabeça no meu peito, enquanto passava as mãos no seu cabelo e tentava te arrancar o cansaço. Você fechava os olhos, soltava a cabeça para trás, entreabria os lábios, suspirava, abria os olhos de novo e me dava um meio sorriso. Naquele momento não sabia se havíamos vivido isso ou não.

Não sei se o nervosismo daquele momento era porque te revia ou por que te revia sozinha. Não era um reencontro, mas um encontro meu com você, que estava alheio a minha presença. Não sabia se queria que me visse ou não. Qual dos dois seria pior? Que me visse e ignorasse ou que não me visse, e aí teríamos perdido a única chance de nos rever?

***

Voltei a abaixar a cabeça, segurava a taça vazia com as mãos, na falta de melhor coisa do que fazer com elas. Foi aí que vi seus pés parados ao lado da mesa, sem saber de onde eles surgiam, qual caminho você tinha feito do caixa até mim. Levantei os olhos e lá estava você, com o olhar incrédulo e o meio sorriso de sempre.

Você se sentou na cadeira da frente, riu. Um sorriso aberto, dessa vez, e que eu não consegui decifrar. Não consegui te dizer nada, fiquei apenas te olhando, sem retribuir o sorriso, ainda surpresa. Sim, já tinha te visto, mas a surpresa não era um fingimento, era real. E talvez ainda hoje me surpreenda o fato de que te encontrei aí. Você foi o primeiro a falar.

- O que você está fazendo aqui?

Demorei ainda um tempo para te responder. Não conseguia entender exatamente porque você havia decidido sentar-se aí na minha frente para me perguntar isso. Eu senti vergonha, me senti pega no flagra, como se eu não tivesse o direito de estar aí, como se eu tivesse violado um acordo tácito de não ir a lugares onde poderíamos nos encontrar porque um reencontro poderia ser devastador. E nenhum de nós saberia ou queria ter que lidar com isso.

Gaguejei, ergui os ombros como quem diz não-tenho-culpa, dei um sorriso displicente, soltei um suspiro.

- Tive que vir para cá.
- Teve? Mas para que exatamente...
- Ahn... Trabalho. Vim a trabalho. Me mandaram para cá.

E você continuou me olhando com os olhos afiados, meio que não acreditando. Esperando talvez que eu te dissesse o que você queria ouvir. De que eu havia ido atrás de você. Que havia comprado uma passagem de avião e aterrizado na sua cidade apenas com uma mochila e seu endereço nas mãos. Que havia então te seguido por três dias e que sabia que você sempre parava aqui para comprar cigarros, e que havia sentado aqui, tomado um vinho apenas para disfarçar que te esperava, fingindo a coincidência. Que era isso, estava te esperando, e que não te havia esquecido, que te amava, que estava disposta a mudar de país por você.

- Ainda não to acreditando que você está aqui, que estou te vendo na minha frente – você disse em voz baixa, como que pensando alto.

E então você riu de uma maneira que nunca gostava de ver você rir. Da mesma maneira que você riu quando me entregou o pen drive que eu havia te emprestado, logo ali quando terminamos tudo. E eu disse: ‘pode ficar’, porque naquele momento queria que algo meu ficasse com você, ainda que fosse algo tão imbecil quanto um pen drive. Não suportava a ideia de que você iria embora sem nada meu.

- Eu cheguei a pensar que havia esse risco da gente se encontrar, mas achei que estava viajando...
- Risco? – você disse, abrindo o maço de cigarros e colocando um entre os dedos, sem acender.
- É.
- Risco? É algo tão horroroso assim me rever? – Você me perguntou rindo, claramente tentando dissimular a raiva - Te parece arriscado? Que risco eu te ofereço?
- Não sei... E também não sei por que você está nervoso – Minha voz era defensiva.
- Não estou nervoso.
- Tá bem, então.
- Por que você está falando assim comigo?
- Eu... Eu estou falando apenas. Não estou falando assim nada.
- Podemos ir lá fora? Quero fumar.

Eu sabia que deveria te dizer não, mas não falei. Acenei para o garçom, paguei a conta.
Fazia um frio da porra na merda da sua cidade. Tinha vontade de te dizer que ainda bem que não decidi ir morar aí com você, porque não me adaptaria nunca naquela cidade estranha, fria e certinha demais.

- É sempre frio assim aqui? – Desconversei.
- Quantos dias você fica?
- Até sexta.
- Por que não fica o fim de semana?
- Passagens de domingo são mais caras e eu preciso voltar. Não tô de férias, tô aqui a trabalho.
- Sim, sim, você já falou.
- E por que você quer que eu fique?
- Não disse isso.
- Ok. Tá bom – E não consegui não soltar um riso sarcástico.
- Talvez porque eu queira sair e conversar com você. - Recuo seu, algo inesperado para mim.
- Estamos fazendo isso agora.
- Não assim sem querer. Algo programado.
- Não sei se posso... Quer dizer, posso.
- Não sabe então se quer?

Naquele momento não te entendi. Parecia até que fora você o chutado, o rejeitado, o abandonado. Eu tinha motivo para raivinhas e indiretas. Você não. Você foi quem surtou, mudou da noite para o dia e me deu um fora de perder norte, de perder a vontade de acordar, de trabalhar; de querer dormir e acordar um mês depois. Foi você que terminou porque já tinha outro esquema engatilhado – um esquema chamado Débora, que na época me surpreendeu menos pela rapidez com que você apareceu com ela do que com o fato de que ela era muito parecida comigo.

- Tenho que voltar para o hotel e trabalhar.
- Tá, mas e amanhã?
- Não posso. Na verdade, não sei. Talvez eu não queira mesmo.
- Tá bem – disse você abaixando os olhos.
- Se você quiser, podemos ir andando até o hotel, é a umas três quadras daqui.

No caminho, você me contou um pouco da sua vida. Que sua avó, bem velhinha, ainda estava viva e ainda ouvia tangos antigos. Que ainda não tinha muitas notícias de seu pai, que tampouco te importava. Que sua mãe estava bem e seu irmão estava finalmente crescendo e tomando rumo. Parei em frente à porta do hotel, não te convidei para entrar. Te dei um abraço apertado, que apertou também meu coração, e te dei adeus.
Não me lembro da sua cara e sua reação na hora, sequer se falou alguma coisa. Simplesmente virei as costas e entrei pela porta, porque não sei se suportaria resistir a um pedido ou avanço seu.

***
No meio da madrugada, lembro apenas da moça da entrada bater forte na porta do meu quarto e me dizer que alguém precisava falar comigo e não aceitava ir embora. Você então apareceu na porta do quarto antes que eu conseguisse concatenar alguma ideia. Pediu para que eu não falasse nada, apenas escutasse. Que há muito tempo sonhava com o momento em que ia finalmente poder se explicar e se desculpar. Que se culpava muito por como as coisas terminaram, por não termos mais contatos. Você estava bêbado, me abraçava e pedia desculpas repetidamente. Disse que não me amava mais, que não era isso, mas que quando se deparou comigo, muitas ideias e sentimentos vieram à tona. Disse que havia sido incapaz de lidar com a situação, que de fato arrumar outra havia sido uma fuga. Que surtou de um dia para o outro – e que na noite anterior ao término havíamos assistido a Amantes do Círculo Polar e que tinha ido dormir naquele dia pensando que nunca queria se envolver com alguém daquele jeito que aparecia no filme. Que tinha medo de se sentir assim tão dependente e apaixonado por mim. E completou afirmando que naquela noite eu não tinha transado com ele, o que achou inadmissível e uma prova de que ele gostava mais de mim do que eu dele. Foi nesse momento que o Luís, que até então só via aquilo por detrás de você, como quem ouvia um teatro do absurdo, soltou o mais sincero e sonolento “que porra é essa?”.

Também não lembro nesse momento qual foi sua reação. Ia doer demais ver sua reação. Só lembro que, ali, no meio da madrugada fria você me deixou ali, gelada, sem palavras, sem desfecho, sem rumo. E com muitas explicações para dar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Confissões da TPM


Sonhava que o Brasil ganhava a copa do mundo com Lúcio sendo eleito o melhor jogador, quando, de repente, fui chamado à realidade de uma maneira não muito doce:

- Arnaldo, você viu minha jaqueta preta?Arnaldo?
- Ãh...
- Arnaldo, acorda!
- Oi?
- Acorda! To atrasada e não acho minha jaqueta preta. Que merda!
- Que jaqueta preta, amor? Perguntei, ainda de olhos fechados
- Como assim que jaqueta preta? A minha jaqueta preta ué, a única que eu tenho.

Aí achei melhor abrir os olhos. Alguma coisa estava errada, afinal, ela não tinha uma única jaqueta preta.

- Você tem 5 jaquetas pretas, querida
- Claro que não! As outras não são jaquetas, são casacos.
- Mas são pretas né? você só veste preto, eu confundo...
- Quê que é? Vai reclamar das minhas roupas agora? Vai dizer que eu to gorda também, porra? Disse ela ameaçando despejar lágrimas sobre aquele rosto lindinho

Aí pensei (com meu acúmulo de 30 anos de convivência com mulheres, contando minha mãe e minhas três irmãs): lágrimas + palavrão + tá-me-chamando-de-gorda = TPM. Olhei em volta, a procura de alguma confirmação, e lá estava ela: a cartela de pílulas vazia em cima do criado mudo.

- Claro que não, querida. Suas roupas são lindas e você não está gorda. (sim, eu prezo pelo meu casamento)
- Hum, sei. Então levanta dessa cama e me ajuda a procurar.
- Mas eu realmente não sei de que jaqueta você está falando
- Caralho, putaquepariu, a minha jaqueta preta, porra!

Fechei os olhos e tentei imaginar qual das 5 jaquetas (ou casacos) ela queria. Não deu muito certo. Abri o armário e resolvi tentar na sorte.

- É essa?
- Não. Isso é um casaco.
- e essa?
- Isso não é preto, é azul marinho!
- hum...essa?
- Não! Essa é horrorosa, nem uso mais.
- ok...me ajuda então..como ela é?
- porra Arnaldo..é a jaqueta que eu mais uso, não é possível. Aquela que eu comprei na Zé Paulino. lembra?
- Er...Não.

Não vou nem dizer os palavrões que ela gritou nesse momento, esse texto tá começando a ficar muito sujo. Na verdade era eu que tava perdendo a paciência. Tava louco pra dizer “calma! É só uma TPM”. Mas não dá. Ia chover discurso feminista com palavrão pra cima de mim.

- Cara, vc ta me deixando muito irritada. Sério mesmo. Como é que você não sabe de que jaqueta eu to falando? (desabafou, enquanto jogava todas as roupas – pretas- pra fora do armário)
- É, vc tá muito irritada mesmo. Meio estranho, não acha ?
- O quê que é estranho?
- Você, ué. Irritada desse jeito. Normalmente você não é assim...
- como assim? (agora cavucando o armário enlouquecidamente)
- ah...você só fica irritada de vez em quando
- de vez em quando, quando?
- ah...uma vez por mês....

E aí ela achou a jaqueta preta no meio do armário e caiu na gargalhada. Isso mesmo, caiu na gargalhada. Na verdade ela sabia que eu sabia que ela tava de TPM e que eu tava com medo de falar que sabia. É, ela sabia. E o humor dela mudou completamente. Me jogou a jaqueta na cara com um sorrisinho safado na boca.

- Ta aqui ó. Olha bem e vê se nunca mais esquece. E pode dizer que eu to de TPM. Dessa vez não vou dizer nada... Desde que você me ajude a achar minha blusa preta, não to gostando dessa aqui.
- …
- Rá! to zuando.
(e eu confesso que continuei não lembrando dessa jaqueta, mas fica aqui entre nós).

sexta-feira, 16 de julho de 2010

MACHO DA VEZ - Espaço pra outros olhares, complementos ou até revanchismos por parte deles

Diz o ditado

Quem disse? Ninguém sabe
Faz tempo, mas cabe
Quem sabe, quem disse já sabia
Que até hoje caberia

Diz o ditado popular
Terra alheia, vai devagar
Não avança qualquer sinal
Nem tudo que é mole é mingau

Porém, se um dos dois abrir a roda
O que não mata engorda
Bota a água no feijão
Tempera como quiser
Vazio saco não
Pára de pé

Pois é, o que não falta sobra
Já que Deus não dá asa à cobra

Quem disse? Ninguém sabe
Faz tempo, mas cabe
Quem sabe, quem disse já sabia
Que até hoje caberia

Diz o ditado, não anuncia
Perde a caça gato que mia
Acende a chama, controla a brasa
Cão ensinado não suja a casa

E se pra peixe a maré não tá
Não adianta reclamar
Puxa a rede, amarra o bode
Vai pra casa descansar
Com mandinga quem não pode
Não carrega patuá

E tá tudo certo
Pois não se atira pra matar inseto

Quem disse? Ninguém sabe
Faz tempo, mas cabe
Quem sabe, quem disse já sabia
Que até hoje caberia

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Manifesto

Eu preciso me manifestar contra o mito do amor materno. Amor materno não existe pelo simples fato de que não há como defini-lo. Religiões definem o que são suas crenças, quem é seu deus. A física define até aquilo que nunca nossos olhos vão ver. A psicologia define o que é o ser, os limites do corpo, o desejo. Agora, eu desafio, quem vai me dizer o que é o amor por uma filha? Como ele é?

Paixão, ou amor a primeira vista, você ama sem nem que o sujeito abra a boca e fale alguma coisa, só de ouvir a musica dela tocar na rádio, você ama. Tem o amor-de-vó, o velho papo de ir aprendendo a amar com o tempo, com a convivência, e acaba rolando isso mesmo. Tem daqueles amores que doem demais, que vem junto com problema, com perigo, tensão e arrependimento. Eu já vivi o amor de completude, aquele que vem junto com uma pessoa que forma um par e a gente dança pela vida e para o mundo, traz alegria, traz felicidade, engrandece e pacifica.

Pois então, com filha é tudo isso e mais 18Kg. Algumas filhas fazem você se apaixonar só de saber que ela existe, ali dentro da barriga, ou quanto toca o batuque de 160 batimentos por minuto. Daí a primeira vez que se olham, mãe e filha se desconhecem completamente, mas o tempo, a convivência diária, vão cozinhando em banho-maria essa relação de cuidado. Tanta vida assim, tão junto, faz tudo ficar macro, qualquer medo é pavor, uma tristeza é desespero, qualquer deslize é erro mortal, isso é bem ruim às vezes. Cuidando, recebendo e trocando carinho e interesse, o contato pele com pele, o olhar já conhecido, aquela confiança, uma criança que eu amo indefinidamente.

Não existe o comportamento de quem ama, não existe cartilha de amor de mãe, não existe hora, não há medida. E digo mais, mais isso é só para as fortes: todo dia eu me afasto um pouco mais da minha filha, um tanto que também não se mede, um tanto por dia para que um dia eu seja capaz de viver sem ela, assim como ela há de ser capaz de viver sem mim.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Chau número cuatro

Cadê a merda da minha razão?
Onde afinal se meteu teu bom senso?
Botamos tudo fora, voltamos a ser crianças.
Se é essa a poesia que nos resta, eu a eternizo
com esse punhado um pouco doído
de candentes e francas lembranças.

Redenção

Chegou feito o meu próprio gozo
- lento e forte, imprevisível.

Era antes um moleque que brincava,
E agora me encar(n)ava, desbocado.

Inesperadamente cresceu
inda sem jeito, mas de verdade,
dentro, fora, tresloucado.

A impressão primeira
é que supomos ser superfície
o que também interpretamos como pecado.

(mas eu aposto que é redenção!)

domingo, 11 de julho de 2010

Profissão: taxista


A tarefa é clara e simples: levar o passageiro pro destino que ele quiser. Mas dela sempre duvidaram. Achavam que se perderia, que fecharia alguém, que não daria seta, que passaria o sinal vermelho. Mas não. Pro seu governo, ela tem um raciocínio espaço-geográfico de invejar qualquer carteiro. Sabe trocar pneu, faz controle de embreagem na ladeira com perfeição, e identifica que o problema é no carburador só pelo barulho.

Tem medo de trabalhar à noite. “Sabe como anda a violência, né?”. Mentira. Não trabalha à noite porque bebe e não gosta de misturar prazer com trabalho. Mentira. Às vezes mistura sim. Carrega o mundo no carro. O mundo não, o necessário para dar uma repaginada no visual no final do expediente: batom, base, secador de espinhas, pente, elásticos pro cabelo e mais alguns cosméticos que caibam no porta-luvas. Em baixo do banco de motorista leva sempre uma sacola com uma muda de roupas e uma calcinha limpa pro caso de misturar prazer com trabalho e dormir num lugar não planejado, com algum passageiro gatinho. No tapa-sol tem um espelho. Na bolsa, uma arma.

No ponto em que trabalha não tem amigos. Inimigos, talvez. Uma vez dormiu com o Jerônimo, taxista antigo do ponto. Ficou mal falada. Não bastando ser taxista ela ainda faz sexo-sem-compromisso com colegas de ponto. “Meu deus, será que essa moça não tem mãe?”. Ter até tem, mas gosta mesmo é do pai. Mecânico, foi ele quem a ensinou a gostar de carro, graxa e cheiro de gasolina. A mãe, ah..a mãe não faz nada de mais.

Às vezes, quando fica horas presa num engarrafamento - calor de 35 graus - seguido de chuvas torrenciais que alagam as ruas em apenas 5 minutos, ela até acha que deveria ter escutado a mãe e ter sido professora. Profissão de mulher. “Mulher nasceu pra ensinar, pra educar”. Talvez. Mas ela gosta mesmo é de ser taxista. Desbravar ruas desconhecidas, ouvir milhões de histórias de passageiros, tirar um cochilo quando quiser no seu próprio ambiente de trabalho, fazer seu horário. Recentemente decidiu que não trabalharia às sextas-feiras.

Odiou quando criaram a Lei Cidade Limpa. Poxa, aqueles outdoors, aquelas fotos enormes nas faixadas dos prédios, aquele colorido constante pelas ruas... era tão bonito! Distraíam nos momentos de descanso e serviam como referência para achar ruas nos momentos de trabalho. Também odiou a Lei Seca. Mas por motivos outros.

Faltou uma informação importante: ela tem dois filhos. De pais diferentes. “Um é DJ e o outro é um japonês que vive lendo”. É verdade que desconta neles um pouco do machismo que, eventualmente, sofre. Nenhum deles se orgulha da profissão da mãe. Quem sabe um dia.

Sonha em levar um passageiro famoso. Pode ser atriz, político, jogador de futebol. Mas seu sonho mesmo, de verdade, é ser dona de uma frota. De uma frota só de taxistas homens. Aí sim ela poderia descontar o machismo que, cotidianamente, sofre. Oxalá ela consiga (ou eu temo pelo futuro do DJ e do japonês que vive lendo).

quinta-feira, 8 de julho de 2010

uma carta

Olá meu pequeno gigante,

fiquei alguns meses sem notícias suas. sempre que ia pegar a conta de luz com o carteiro, procurava algum envelope pálido com letras cadentes. não te perdoaria, mas hoje estou radiante como se tivessem colocada uma estrela pontuda desenhada por criança bem no meio da minha testa. descobri o que é arte.

outro dia, acordei de madrugada e a luz da geladeira me deprimiu. cheguei a procurar um revólver, mas não tinha nenhum na casa.

Andei de mãos dadas com meu senhor. ele é tão calmo... o único problema é que não me faz sorrir. andamos pela costa e ele me apresentou como sua "pequena raiz de flor" (o que em francês soa muito mais romântico).

minhas cobertas vermelhas se rebelaram contra mim. me deram uma febre incrível e um grande calor no corpo. ela esteve aqui de novo. com a mesma camisola branca e os pés descalços. o cabelo desta vez estava solto, sem aqueles ridículos prendedores dourados. desta vez fui mais educada e ofereci café. ela não quis. não disse nada, só ficou me olhando com aquela cara de garça infeliz.

preciso te contar de um sonho estranho. tive uma colega no jardim de infância que era muito gorda e estava comendo o tempo inteiro. ela me fazia feliz, pois eu sabia que sempre estaria melhor do que ela. desde nova essa crueldade me persegue.

nos meses passados da adolescência, enquanto chorava em algum banheiro escuro, bêbada e de quatro, eu soluçava: "onde está você, ana?" essa menina misteriosa acompanhou todas as minhas crises. enfim, sonhei que ana dançava com alain delon no meio de um rio. não sei se ela morreu ou se deixou de ser patinho feio.

de qualquer jeito não posso mais escrever. pouco a pouco a pele rasga.

até mais, meu caro.

Primeiro beijo

Eram cinco meninos para cinco meninas. Ou seis? O que importa é que estava tudo lá: a luz que pisca (tem um nome essa danada, mas quem cresceu na década de 90 há de lembrar: tinha a azul, a roxa, a vermelha. E elas rodavam), as balinhas de hortelã espalhadas em forma de coração, uma coletânea de música lenta de arrasar. Meu deus, como a gente estava nervosa. Eu já tinha escolhido o meu: o rapaz alto, que já tinha voz grossa com seus onze anos, que parecia saber tudo de tudo.

Mas nosso sistema de escolher o par era complexo e democrático: todo mundo tinha direito a voto. E entre primeira e segunda opção, fiquei com minha segunda. Ok, ainda está valendo.

Fomos para a pista de dança: um pedaço da sala da casa da amiga, enquanto os pais tentavam dormir no quarto lá dentro. A música lenta faz sua abertura. As mãos suam tanto que aprendo a dar uma limpadinha no ombro do parceiro. Parceiro este que estava há uns seis metros de distância, segurando nervosamente minha cintura.

Eis que começa: “what´s up?”, minha música favorita número um desse ano. Nossa, é agora. Vem ele, o beijo. Meu deus, vou saber como? O que faço com a língua, a boca, os dentes, os lábios? E se ele não gostar? E se eu ficar com fama para todo o sempre de ter o pior beijo de toda a sexta série do colégio?

Mas aí a luz se apaga um pouco mais. O abraço se aperta. Ele abre a boca. Eu abro também. Vem uma língua enorme me incomodar. Fico lá, esperando o tormento acabar. Estou beijando? É isso? Nossa, achei que era coisa melhor. E essa baba toda, faz parte?

Pronto, acabou. E foi beijo mesmo, balaço, de língua, salada mista. Fico feliz de novo. Ufa, passou. Com licença que vou ali. Oi? A música nem acabou. Mas preciso, com licença, tchau.

A legião de cinco (ou seis?) amigas vem atrás. Vamos para a garagem, para eu contar tudo do grande momento. Antes de falar, é tanta emoção e enjôo que eu... vomito!

Vomitei, minha gente, ainda bem que disfarçado atrás do botijão de gás. Nem liguei. Voltei para a sala altiva, cabeça erguida, toda mulher.

Sem café da manhã

A tua presença
no quarto
que era pago
mas o amor era de graça
era simples e fácil
mas o quarto este era pago
e frio
e esquisito
eu era alheia ao quarto

tanto faz se fosse neste ou naquele
eu queria que fosse pra sempre
mesmo que a janela desse para área de serviço
e eu tivesse que esticar o pescoço para ver os pássaros
e árvores do outro lado
e o canto dos pássaros disputassem com o bater das panelas e xícaras
ou que no meio da noite
a gente pudesse escutar os gritos
de outras pessoas sendo ou fazendo alguém feliz,


Para mim nem era pouco e nem era demais,
era completo, mesmo que fosse rápido e que fosse
estranho, era o que eu tinha de mais poético,
ouvir você recitar Brecht na manhã seguinte, mesmo correndo e com fome...

Essa era a medida da beleza, e eu quis mesmo assim
e nem perdia tempo pensando
que poderia acabar, para mim tinha sido já pra sempre...
deve ser por isso que eu sempre lembre...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

MACHO DA VEZ - Espaço pra outros olhares, complementos ou até revanchismos por parte deles

Todos ou todas, qual a diferença?

Patrick Mariano

Maria foi mãe do Jesus, que na época ainda não era "o cara". Além de mãe daquele que na época não era "o cara", Maria era virgem, santa e pura. O filho foi processado, julgado e sem direito a defesa, condenado à morte. Pobre coitado, com certeza era pobre e preto, ou apenas bem pobre. Pobre e preto ou apenas bem pobre, só tem advogado quando há defensoria e, na época em que ele ainda não era "o cara", não tinha. E Maria sofreu, chorou e ficou aos seus pés, na ponta de baixo da cruz.

Tal história de injustiça e sofrimento ressalta hoje, o papel do Filho e também, é claro, o da mãe. O modelo de mãe. O julgamento mais famoso da história ocidental, foi mal interpretado e, sobrou pra alguém a conta dessa mal interpretação: a Mãe.

A Mãe tem que ser como Maria, pura, virgem, santa.

Ela não pode ter falhas, já o homem pode, porque ele foi o sacrificado. Mesmo que, aos 47 do segundo tempo tenha se revoltado contra o Pai, que nem ali tava.

E assim, tudo se construiu no ocidente. Ontem, 2010 anos depois dessa história, o Datena ressaltava que a Mãe do filho do Bruno quis ter relações com ele por interesse, pela mesada, pela pensão, como se isso fosse o central, esquecendo-se que ela quem, possivelmente, foi a sacrificada.

A trepada que eu nunca dei

No final do décimo quinto copo de cerveja, caiu a realidade. Não, esse cara nunca vai me dar mole. E não vai dar porque ele é o cara. Ele é inteligente, é sensível, é talentoso, fala manso, mas tem a voz grossa e um sotaque irresistível. E ele é lindo. E tímido.

Sim, havia uma esperança no começo da noite. Um olhar flagrado, uma vontade dele de se aproximar. Mas não se aproximou. Será que não dei abertura? Não, certeza que dei. Puxei conversas, falamos de filmes, de futebol, de bebedeiras. Fiz piadas, ri das dele com sinceridade. Fiz as unhas, lavei o cabelo com mais carinho que o normal, usei aquele vestido decotado e romântico. Mas a realidade bateu naquele momento em que dei o último gole no décimo quinto copo de cerveja e o coloquei sobre a mesa. Suspiro.

Outro olhar flagrado. Mais quinze copos de cerveja e me enrosco nesse cara como um gato carente se enrosca no dono. Não. Não - sua ridícula - ele não quer. O amigo dele já até está de xavecando e o amigo dele não faria isso se soubesse que ele poderia estar interessado. É isso. Não quer.

O trigésimo copo de cerveja vem. E também a aceitação, o conformismo. Vou embora. Vou embora, porra. Caralho, merda.

E então, ele faz o convite. E o faz genialmente. Que de outra forma esse ser genial o faria que não genialmente? Convite discreto e certeiro. Abafado em meio às conversas da mesa. Mas eu ouvi. Ouvi e não acreditei. Pensei que talvez minha cerveja de todos os sábados havia começado a ter poderes alucinógenos. Fiquei muda, calada, esperando algum sinal, outro olhar, outra palavra. Olhei para os lados para ver se as palavras dele eram de fato para mim. E foi aí que ele perguntou de novo, para não deixar dúvidas. E foi aí que começou a promessa de uma noite feliz. Deu um sorriso, e saímos pela rua sob o olhar de desaprovação do amigo.

Aí então descobri que ele tinha as mãos macias, suaves; que era gostoso de abraçar, de cheirar, de alisar, de beijar. Que tinha o cabelo gostoso de passar a mão, que tinha pegada, timing e tudo mais. Eu estava ali, na cama, com o cara. O cara. Não conseguia parar de pensar que ele era o cara. E comecei a pensar que toda a cerveja tomada na espera daquela frase genial havia sido cerveja demais. E que ele era demais e que talvez eu fosse de menos. Não sei exatamente como, mas brochei, minha gente. Brochei. Mas ele era o cara e ainda dormiu aí, comigo, abraçado, com direito a cafuné na cabeça.

E no dia seguinte ele se foi embora lá para longe, onde todos falam com aquele sotaque que só é bonito na boca dele. E nunca mais o vi. Me restou a vontade, a fantasia com o não concretizado, o que faz dele, hoje, minha conquista inconquistável.

domingo, 4 de julho de 2010

Sobre dentes, dores e fins

Meu primeiro dente de leite amoleceu durante umas férias de julho que eu passava na casa de uma tia. Em um entardecer, minha tia pediu para ver meu dente. Eu, ingenuamente, abri a boca. Ela colocou a mão cuidadosamente, balançou o dente devagar e em fração de segundos o rancou à força. Senti o gosto de sangue na boca, abaixei a cabeça e as gotas foram caindo no chão. Só me lembro de chorar muito, atrás de um sofá, enquanto ouvia uma prima minha, dez anos mais velha, brigar com minha tia, dizendo que o dente apenas havia começado a amolecer, que não estava para cair e que ela tinha sido sádica. “Vai traumatizar a criança, porra”. Dessa frase me lembro bem.

Dali por diante, deixava meus dentes caírem sozinhos. Meu pai, minha mãe, meu irmão, professoras, o padre, o prefeito da cidade vinham tentar me convencer a arrancar os dentes moles, mas eu permanecia irredutível. Alguém havia me dito que os dentes deveriam cair sozinhos. Por que passar por aquela dor se podiam cair sem sofrimento?

O canino esquerdo caiu quando mordi uma torrada, e lá ficou ele cravado. Outro caiu (sozinho, claro) durante a noite. Quando abri a boca para escovar os dentes, vi que estava banguela. Nunca o achei. Talvez a fada dos dentes tenha tirado enquanto eu babava de boca aberta.

O melhor desse método, é que nunca doía. Eles iam embora naturalmente, sem que eu sentisse nada, sem que houvesse esforço aplicado na tarefa.

De alguma maneira trato os relacionamentos como tratava os dentes. Não arranco às pressas, espero que afrouxem e desatem naturalmente, deixo seguir o curso natural. Assim dói menos.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

E não é que ainda mexe com a gente?


Merda. Tô quieta no meu canto.

Já faz um ano que acabou, depois de tantos turbilhões – como a gente, o mundo inteiro bem sabe, porque no fundo, somos todos iguais – mas acabou. Mesmo!

Ele tá em outra, tem outra namorada, gata, inteligente, magra, alta, mo­rena. Tá lá, vivendo a vidinha dele, e eu a minha.

Sabe? Tô trabalhando como nunca na vida, um tanto que eu nunca quis, mas com o que eu sempre quis. Nunca estive tão bem sucedida profissionalmente, ga­nhando bem, sem patrão, viajando pra um lugar interessante pelo menos uma vez por mês, perambulando de um lado pro outro, fazendo contatos, participando de congresso, pensando até em projeto de doutorado, ganhando bolsa de estudos no exterior a torto e a direito (na verdade, sempre pro mesmo lugar, mas ganhando bolsa de estudos!). Ando colocando meu corpo em dia, minha saúde em dia, correndo cedinho, com direito a lista de música pra lá de moderna, me alimentando mais que educadamente, emagrecendo, de cabelinho curto e fashion, super atualizada: converso sobre o pré-sal, sobre alteri­dade, sobre meio ambiente e até sobre relacionamento, um arraso.

Mas não é que a merda do bofe ainda mexe com a gente?

Um pouco mais de consideração, por favor. “É proibido falar contigo?” Não, mas devia ser. Até o dia em que eu liberasse. Sim, eu. Afinal, quem é que manda nessa budega? Não é quem toma o pé na bunda não? O que eu ganho com essa história?

Quem foi que te deu o direito de me amar ou de falar que me ama se quem te come não sou eu? Quem te disse que você pode, do fundo da sua mediocridade, dizer que é apaixonado por mim, mas que precisa viver um relacionamento com a sua vizinha? É porque eu estou a 500 km de distância de você. E a vizinha... Eu nunca es­colhi o caminho mais fácil. E é por isso que você não tem o direito de mexer comigo. Porque 500 km, pra mim, é fichinha. Tiro de letra.

Eu não sou mole não. Sou aquela que você, do ladinho da sua mulher, vai comer com os olhos. Ou com o pau. E vai viver a história mais intensa, mais monta­nha russa. Vai sofrer até o fundo do poço, mas vai ser mais feliz que todo mundo, quando tiver de ser. Mas ao mesmo tempo, não vai conseguir trabalhar, nem estudar, acabou a sua paz, a sua segurança. E olha que nem motivo te dou. Porque sou a mulher mais apaixonada que você poderia conhecer. Aquela que você achava que não existia. Ou aquela sobre quem você nunca tinha parado pra pensar, porque ela não fazia nem parte do seu vocabulário. Mas pra me aguentar, é preciso muito. Eu não sou pra casar. Uma relação como a nossa nunca podia se submeter a uma instituição burocrática des­sas. O problema é que ainda não inventaram o que fazer com a gente. Sabe o que é pior? Até a sua mulher pode ser eu. Mas não com você. Com você, com essa coisica estável e mansa de vocês dois, vocês vão longe. Ela também preferiu a paz. Cada um vai chegar ao topo do seu projeto individual. Vai estar tudo em ordem. Cada coisa no seu lugar. Não é equilíbrio o que a gente sempre procura por aí?

E naquele momento do olho disperso, das reflexões sem futuro, quando você sabe que, no fundo, quer é mais, vai se lembrar de mim e vai pensar, com arrepen­dimento e angústia no coração: não é que ainda mexe comigo?

Noturnas

Numa noite seca e de seca, se conheceram. Trocaram olhares, palavras, impressões e telefones.

Tentaram encontrinhos durante três semanas seguidas, agendas teimosamente incompatíveis.

Lá pelas tantas - ela já mal lembrava - ele chamou:

- Tá sabendo do filme de hoje no festival?

- Opa, claro, imperdível. Tou indo pra lá.

- Ótimo. Te acho na multidão. Cerveja depois?

- Feito.

Na saída, rapidíssima troca de impressões sobre a obra-prima do genial... do estupendo...

- Ei, topa a cerveja ali em casa? É perto, umas, deixa ver, OITO quadras.

- Ah, ali do lado!

As noites já não eram secas.

- A gente tem que aproveitar quando chove pra se molhar, né? Depois, só ano que vem.

Ligeiríssima permuta de biografias. Ele tocava piano profissionalmente, escrevia, desenhava, militava.

Ela ouvia. E ele também nadava e corria e pedalava.

- E cê mora com quem?

- Tou num apê de uns amigos, meio temporário, há pouco separei do namorado...

- Saquei.

- E você, vive com a família?

- Não!

- Amigos?

- Nem.

- (...)

- É com a Patrícia.

A noite voltou a ficar seca.

- Ah, não, aí é foda.

- Cê vai ficar parada no meio da chuva mesmo?

- Ô, é sério, não tô a fim de confusão. Essa cidade é um ovo. Pô, que merda, menino!

Relampeava.

- A relação é aberta? Ela acha tranquilo?

- Ah, guria, ela era de boa, sempre foi.

- Entendo. Mas depois ela sacou que era desigual, né? Passou a se sentir idiota, percebeu que livre mesmo era só você?

- Sei lá. Acho que tem a ver com...

- Já sei: amadureceu!

- É, né? Pode ser. Dizem que quando a menina engravida, vira mulher.

Uma cigarra agonizou.


Em cima daquilo

Ah, pudesse eu

inverter o tempo, desfazer o feito

escolher de novo!

O lance é que contigo eu quero marx,

(e não é Karl nem é Groucho).

sábado, 26 de junho de 2010

Diagnóstico

- Ah! Já entendi.
- Já? perguntei, meio desconfiada.
- Já. Fecha os olhos.
- Hum..
- Agora concentre-se e imagine a figura dele.
- Hum...
- Sabe aqueles cabelos cacheados que você disse que ele tem?
- Hum..
- Tira.
- Er...como assim “tira”?
- Tira, ué. Saca fora.
- Ta bom, tirei (ainda desconfiada).
- Ele usa brinco?
- Orelha esquerda. Argolinha prateada.
- Tira também.
- Algum piercing, tatuagem ou qualquer tipo de body art?
- Não.
- Menos mal. Sardas?
- Aham.
- Tira.
- Ok...
- Como ele se veste?
- Se veste bem
- Bem como?
- Ah, você sabe. Tem mais roupas do que eu... nunca veste jeans e usa uma regata por baixo da camisa pra não suar.
- Então tira a roupa dele também.
- Já fiz isso várias vezes... soltei, jurando que se tratava de uma piadinha inédita.
- Engraçadinha. Ele toca algum instrumento musical?
- Porra, como você sabe?
- Querida, você não é a única mulher que vem ao meu consultório... Violão?
- Guitarra.
- Uh..guitarra é covardia. Tira.
- Tá tirado. Er.. se for ajudar, ele faz as unhas.
- Você quer dizer que ele corta as unhas?
- Não, ele faz as unhas. Vai no salão, corta, lixa e passa base.
- E você acha isso legal?
- Não!
- Então não precisa tirar.
- Certo.
- Agora, sabe esse sexo maravilhoso, lento, maduro e generoso que você diz que ele faz? Tira
- Er...ok.Tirei.
- E aí? O que sobrou?
- Uma lombriga de unhas feitas.
- Tá curada.

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