sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Conto necessário

Não sei exatamente qual foi a cara que fiz quando te vi. Ou melhor, quando te revi. Mais tarde, quando contei do reencontro para a Ana, e ela me perguntou qual havia sido minha reação ali na hora, não tive resposta.
Fiquei tentando reviver a cena, tentei descrever para mim mesma o que senti naquele momento, como meu corpo reagiu, se com tensão ou com desejo, ou com os dois. Queria eu poder ver minha própria cara naquele exato momento e quem sabe conseguir desvendar por meio dos meus olhos, minha pele, minha boca o que você ainda provocava em mim. Mas, a verdade é que como qualquer situação limite, não me lembro do que gostaria e deveria lembrar. Lembro apenas de alguns detalhes sem importância. Do desenho sem sentido que o vinho, já seco, fazia nas paredes da taça a minha frente, do contorno da mesa em madeira escura, da meia calça preta rasgada da menina que saia pela porta.
Ela saía e você entrava. E então eu me lembro apenas que te vi e que abaixei os olhos. Era você. Te vi, mas não queria te ver. Não podia te ver. Mas te vi. E os milésimos de segundo em que te vi foram suficientes para ver que você continuava com os mesmos olhos afiados, o mesmo ar de mistério. Que ainda mantinha o andar de soldado, a boca brilhante, convidativa. Tudo isso eu pensei ali talvez, naqueles milésimos de segundo. Não precisava de muito tempo para me lembrar do essencial de você, é verdade, ainda que essas memórias estivessem bem enterradas em algum lugar. E nem eu sabia disso, soube ali, ao abaixar a cabeça e permanecer olhando para a mesa bege com um contorno de madeira escura. E naquele momento tive medo de perder, mais uma vez, o controle.

***
Esperei alguns segundos e levantei a cabeça. Você comprava cigarros. Estava sozinho. Agora me lembro de que tinha um olhar cansado. Um ar cansado. E aí naquele momento, me vi deitada com você na cama, você de costas para mim apoiando a cabeça no meu peito, enquanto passava as mãos no seu cabelo e tentava te arrancar o cansaço. Você fechava os olhos, soltava a cabeça para trás, entreabria os lábios, suspirava, abria os olhos de novo e me dava um meio sorriso. Naquele momento não sabia se havíamos vivido isso ou não.

Não sei se o nervosismo daquele momento era porque te revia ou por que te revia sozinha. Não era um reencontro, mas um encontro meu com você, que estava alheio a minha presença. Não sabia se queria que me visse ou não. Qual dos dois seria pior? Que me visse e ignorasse ou que não me visse, e aí teríamos perdido a única chance de nos rever?

***

Voltei a abaixar a cabeça, segurava a taça vazia com as mãos, na falta de melhor coisa do que fazer com elas. Foi aí que vi seus pés parados ao lado da mesa, sem saber de onde eles surgiam, qual caminho você tinha feito do caixa até mim. Levantei os olhos e lá estava você, com o olhar incrédulo e o meio sorriso de sempre.

Você se sentou na cadeira da frente, riu. Um sorriso aberto, dessa vez, e que eu não consegui decifrar. Não consegui te dizer nada, fiquei apenas te olhando, sem retribuir o sorriso, ainda surpresa. Sim, já tinha te visto, mas a surpresa não era um fingimento, era real. E talvez ainda hoje me surpreenda o fato de que te encontrei aí. Você foi o primeiro a falar.

- O que você está fazendo aqui?

Demorei ainda um tempo para te responder. Não conseguia entender exatamente porque você havia decidido sentar-se aí na minha frente para me perguntar isso. Eu senti vergonha, me senti pega no flagra, como se eu não tivesse o direito de estar aí, como se eu tivesse violado um acordo tácito de não ir a lugares onde poderíamos nos encontrar porque um reencontro poderia ser devastador. E nenhum de nós saberia ou queria ter que lidar com isso.

Gaguejei, ergui os ombros como quem diz não-tenho-culpa, dei um sorriso displicente, soltei um suspiro.

- Tive que vir para cá.
- Teve? Mas para que exatamente...
- Ahn... Trabalho. Vim a trabalho. Me mandaram para cá.

E você continuou me olhando com os olhos afiados, meio que não acreditando. Esperando talvez que eu te dissesse o que você queria ouvir. De que eu havia ido atrás de você. Que havia comprado uma passagem de avião e aterrizado na sua cidade apenas com uma mochila e seu endereço nas mãos. Que havia então te seguido por três dias e que sabia que você sempre parava aqui para comprar cigarros, e que havia sentado aqui, tomado um vinho apenas para disfarçar que te esperava, fingindo a coincidência. Que era isso, estava te esperando, e que não te havia esquecido, que te amava, que estava disposta a mudar de país por você.

- Ainda não to acreditando que você está aqui, que estou te vendo na minha frente – você disse em voz baixa, como que pensando alto.

E então você riu de uma maneira que nunca gostava de ver você rir. Da mesma maneira que você riu quando me entregou o pen drive que eu havia te emprestado, logo ali quando terminamos tudo. E eu disse: ‘pode ficar’, porque naquele momento queria que algo meu ficasse com você, ainda que fosse algo tão imbecil quanto um pen drive. Não suportava a ideia de que você iria embora sem nada meu.

- Eu cheguei a pensar que havia esse risco da gente se encontrar, mas achei que estava viajando...
- Risco? – você disse, abrindo o maço de cigarros e colocando um entre os dedos, sem acender.
- É.
- Risco? É algo tão horroroso assim me rever? – Você me perguntou rindo, claramente tentando dissimular a raiva - Te parece arriscado? Que risco eu te ofereço?
- Não sei... E também não sei por que você está nervoso – Minha voz era defensiva.
- Não estou nervoso.
- Tá bem, então.
- Por que você está falando assim comigo?
- Eu... Eu estou falando apenas. Não estou falando assim nada.
- Podemos ir lá fora? Quero fumar.

Eu sabia que deveria te dizer não, mas não falei. Acenei para o garçom, paguei a conta.
Fazia um frio da porra na merda da sua cidade. Tinha vontade de te dizer que ainda bem que não decidi ir morar aí com você, porque não me adaptaria nunca naquela cidade estranha, fria e certinha demais.

- É sempre frio assim aqui? – Desconversei.
- Quantos dias você fica?
- Até sexta.
- Por que não fica o fim de semana?
- Passagens de domingo são mais caras e eu preciso voltar. Não tô de férias, tô aqui a trabalho.
- Sim, sim, você já falou.
- E por que você quer que eu fique?
- Não disse isso.
- Ok. Tá bom – E não consegui não soltar um riso sarcástico.
- Talvez porque eu queira sair e conversar com você. - Recuo seu, algo inesperado para mim.
- Estamos fazendo isso agora.
- Não assim sem querer. Algo programado.
- Não sei se posso... Quer dizer, posso.
- Não sabe então se quer?

Naquele momento não te entendi. Parecia até que fora você o chutado, o rejeitado, o abandonado. Eu tinha motivo para raivinhas e indiretas. Você não. Você foi quem surtou, mudou da noite para o dia e me deu um fora de perder norte, de perder a vontade de acordar, de trabalhar; de querer dormir e acordar um mês depois. Foi você que terminou porque já tinha outro esquema engatilhado – um esquema chamado Débora, que na época me surpreendeu menos pela rapidez com que você apareceu com ela do que com o fato de que ela era muito parecida comigo.

- Tenho que voltar para o hotel e trabalhar.
- Tá, mas e amanhã?
- Não posso. Na verdade, não sei. Talvez eu não queira mesmo.
- Tá bem – disse você abaixando os olhos.
- Se você quiser, podemos ir andando até o hotel, é a umas três quadras daqui.

No caminho, você me contou um pouco da sua vida. Que sua avó, bem velhinha, ainda estava viva e ainda ouvia tangos antigos. Que ainda não tinha muitas notícias de seu pai, que tampouco te importava. Que sua mãe estava bem e seu irmão estava finalmente crescendo e tomando rumo. Parei em frente à porta do hotel, não te convidei para entrar. Te dei um abraço apertado, que apertou também meu coração, e te dei adeus.
Não me lembro da sua cara e sua reação na hora, sequer se falou alguma coisa. Simplesmente virei as costas e entrei pela porta, porque não sei se suportaria resistir a um pedido ou avanço seu.

***
No meio da madrugada, lembro apenas da moça da entrada bater forte na porta do meu quarto e me dizer que alguém precisava falar comigo e não aceitava ir embora. Você então apareceu na porta do quarto antes que eu conseguisse concatenar alguma ideia. Pediu para que eu não falasse nada, apenas escutasse. Que há muito tempo sonhava com o momento em que ia finalmente poder se explicar e se desculpar. Que se culpava muito por como as coisas terminaram, por não termos mais contatos. Você estava bêbado, me abraçava e pedia desculpas repetidamente. Disse que não me amava mais, que não era isso, mas que quando se deparou comigo, muitas ideias e sentimentos vieram à tona. Disse que havia sido incapaz de lidar com a situação, que de fato arrumar outra havia sido uma fuga. Que surtou de um dia para o outro – e que na noite anterior ao término havíamos assistido a Amantes do Círculo Polar e que tinha ido dormir naquele dia pensando que nunca queria se envolver com alguém daquele jeito que aparecia no filme. Que tinha medo de se sentir assim tão dependente e apaixonado por mim. E completou afirmando que naquela noite eu não tinha transado com ele, o que achou inadmissível e uma prova de que ele gostava mais de mim do que eu dele. Foi nesse momento que o Luís, que até então só via aquilo por detrás de você, como quem ouvia um teatro do absurdo, soltou o mais sincero e sonolento “que porra é essa?”.

Também não lembro nesse momento qual foi sua reação. Ia doer demais ver sua reação. Só lembro que, ali, no meio da madrugada fria você me deixou ali, gelada, sem palavras, sem desfecho, sem rumo. E com muitas explicações para dar.

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