domingo, 15 de agosto de 2010
Nunca se atrase
Carol me conheceu através de Fulana, amiga em comum de faculdade. Estávamos solteiros naquela época, o que na visão dessa nossa amiga, veio a calhar.
Embora nunca houvesse conversado com a pretendente, já sabia muito de sua vida - não por curiosidade, mas pela paciência dos mil conselhos que recebi de Fulana. Ambos éramos interioranos que agora morávamos na capital, ambos estudávamos na mesma Universidade, tínhamos a mesma idade, e compartilhávamos o demasiado gosto pelas substâncias ilícitas, o que me despertou interesse. Neste mundo transcendental, uma companhia é sempre bem-vinda.
Marcamos o primeiro encontro numa casa de sinuca que fica num bairro nobre da cidade e, portanto, regado de tóxicos e belezas artificiais. Tratamos de chegar pontualmente, mas como ela foi de carro e eu de ônibus, cheguei meia hora atrasado. O problema é que, para pessoas como nós, trinta minutos são uma eternidade e num tempo sem limites a capacidade de entorpercimento é incalculável.
Quando adentrei o bar, num breve reconhecimento da área, identifiquei algumas figuras carimbadas, às quais somos obrigados a expressar familiaridade por meio de apertos de mãos e abraços, mais por cumplicidade que por respeito. Neste processo gastei mais quinze minutos. Quando finalmente cheguei à mesa onde se encontrava Fulana, pessoas diversas e Carol, pude confirmar que de fato a sua beleza condizia com os relatos de nossa amiga, assim como seu comportamento.
Devido aos meus 45 minutos de atraso, até hoje não conheço o estado sóbrio de Carol, mas sei da sua transição para o que podemos chamar de estado futuro mais que perfeito de consciência. Nos apresentamos, trocamos duas frases e, assim que ela ganhou a partida que jogava, furei a ordem de espera, peguei um taco e prometi não dar colher de chá. Na terceira tacada - ainda sem cair bola nenhuma - enquanto examinava a mesa, ela se aproximou, pediu que segurasse o seu taco e dessa forma, me ocupando as duas mãos, me segurou o rosto e dizendo que faria agora pois não gostaria que depois fosse tarde (o que pode ser interpretado como um devaneio ou uma premonição), me lascou um beijo que conseguiu arrancar assobios e a atenção de alguns ali presentes.
No seu hálito era possível identificar o excesso de álcool, e na velocidade dos movimentos, a cocaína. Talvez essa seja a combinação mais excitante que exista, mas que de sua tradição, desperta um charme doentio que finda tantos amores.
Fiquei entusiasmado com a atitude, aproveitei para beber o tempo perdido entre uma tacada e outra, e ao término da partida já estava no processo de alteração da moralidade humana. Na minha perspectiva a noite só viria a melhorar, pois os ingredientes já estavam sendo misturados e a experiência me dizia que dali para o forno seria questão de tempo. Ah! Eu e minha leviana confiança! A noite estava prestes a adquirir o gosto amargo do inesperado.
Carol aumentou a frequência de viagens ao banheiro e o ritmo de seus gestos transparecia a causa. Pra mim aquilo era o precedente de uma tragédia, que não só se consumava frente aos meus olhos, como era inevitável que àquela velocidade o desfecho chegaria logo.
O batom não foi capaz de esconder o branqueamento dos seus lábios e o baixar das pálpebras era iminente, quando resolvi levá-la para o lado de fora a fim de tomar ar e evitar o barulho intenso. Mal demos dois passos e todo o investimento que Carol fez em uísque saiu pelas narinas e brechas no canto da boca tampada inutilmente - tudo isso sob manifestações coletivas em favor de Raul.
Sabia que a partir daquele instante as coisas só tenderiam a piorar, e com a ajuda de Fulana, nós dois pegamos um táxi em direção à casa de nossa amiga – que era mais perto. Com dificuldade pra subir as escadas, abri a porta com ela desfalecida em minhas costas e, empurrando a porta do quarto com a perna, soltei-a sobre a cama de Fulana. Por um momento contemplei sua beleza impregnada da decadência do estilo de vida que resolvera adotar. Sua calça estava respingada de vômito e os tênis inundados, e balbuciando alguma coisa os retirei com o asco natural da situação.
Aquilo se tornou um momento inédito, mesclado de insatisfação e surpresa, afinal ali estava uma moça linda em condição morimbunda, respirando com dificuldade, suja e com mal cheiro. Com certeza ela levantaria na tarde seguinte, mas havia passado muito perto da dose final naquela noite. E ali estava eu, que longe de demonstrar qualquer alteração de consciência ou espírito, contemplativo abri o guarda-roupa, o armarinho do banheiro, a geladeira e o fogão, e não encontrei nada além de dipirona.
Fulana havia me dito que estava dando um tempo. Fiquei espantado, pois havia imaginado que ao menos um femproporex encontraria ali ao lado da garrafa de Absolut, que me aguardava ansiosa. Sentei no sofá da sala, peguei um copo semi-limpo que estava no seu braço, convidei a vodka a sentar-se comigo e liguei a televisão.
Contei-lhe toda a história e ela consentiu sobre o meu ressentimento em relação a Carol. Quando meu copo esvaziou, no auge da embriaguez, levantei. Mas antes de ir embora, deixei um recado que dizia: “Desculpe-me pelo atraso.”
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