sábado, 18 de setembro de 2010

Epitáfio


Eu escutava toda a sessão de música clássica no rádio aos domingos, com cada pontada de angústia pela sua espera que era como uma vara me partindo em duas. Sua escova de dentes desbotada no estúpido copo da pia me fazia chorar. Você me amava. Estava ali aquela prova concreta: as cerdas gastas de tanta saliva empurrada.

Eu fingia acreditar nas suas teorias baratas, porque era minha única saída. Sua voz, seu argumento, seus óculos, minha única saída para a felicidade.

Você não me beijava a boca, mas passava a mão no meu peito em público como o autêntico macho em domínio. Eu deixava. Eu era sua mesmo. Não por opção, por absoluta falta de escolha. Não tinha mais o que fazer, só aprender a esperar do jeito menos dolorido ou entediante.

E então você: pegava em outros peitos de outras mulheres que deixavam. Deixava que eu chorasse, deixava que eu te falasse de amor. Me deixava ainda em transe e penteava o ralo cabelo que lhe cobre a cabeça grande e saía da cama, da casa, do meu olhar. Dizia que tentava. Dizia isso pra tanta gente que poderia ser engraçado. Mas não era.

Você quase morreu uma quase centena de vezes. Bati o carro no primeiro quase. Ainda não, ainda precisei ouvir outras tantas falsas teorias, outras tantas despedidas. Tanta fome eu passei que comecei a achar que o estado natural da vida era esse.

Vivi em sombra, fazendo da sua imagem minha companhia diária, certeira. Era mais fácil desse jeito, você só falava o que eu queria e me sorria seus lindos dentes com sua barba ruiva no sol, cantava desafinado, me beijava até eu dormir, e só.

Um dia, passou. Estava tão acostumada com sua imagem ali, que me assustei quando ela se foi. Achei simples. Quase solucei. Era muito ar, de repente.

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