Li uma notícia no jornal há uns 4 meses em que uma mulher relatava como foi seu parto. E que o fez por recomendação do obstetra, o mais cedo possível, para que não esquecesse.
Eu estou fazendo isso não por recomendação do obstetra, o mesmo da reportagem, mas por não conseguir dar conta das coisas que estão na minha cabeça e não ter com quem conversar.
Marina nasceu antes da hora: não planejava engravidar ano passado e Heitor não pensava em ser pai nesse período. Seu parto também adiantou em duas semanas.
Mas a filha Marina custou um cadinho a chegar. Até o fim de semana antes de se nascimento não havíamos conseguido conversar sério sobre seu nome e seu sobrenome, que foi definido no cartório. Eu mesma só “batizei”minha filha no banheiro da clínica enquanto aguardava fazer minha última ultrassonografia. Precisava saber se tudo estava bem com minha menina após o médico realizar uma versão cefálica externa. Minha filha veio ao mundo cheia de personalidade, negando padrões, uma semana depois dessa manobra.
Pois bem. Depois da manobra algo mudou em mim. Nasci mãe. Até então minha gravidez era um fenômeno biológico acontecendo comigo. O sujeito filha não existia concretamente para mim. Depois disso Marina nasceu pra mim como um sujeito independente, com quem eu deveria construir uma relação.
Passei a pensar em seu nascimento e em como as coisas, eu, Heitor, a casa, não estavam prontas pra chegada dela. Mas pensava também que tinha três semanas pra preparar a casa e a cabeça pra chegada da minha filha.
Na segunda-feira conversei com meu chefe sobre antecipar minha licença e fui bem lenta pro pilates naquele dia. Estava esquisita, com a cabeça em outro lugar, mas não sabia que já estava pra parir.
Na terça a acupuntura também foi pesada e tive uma conversa estranha com a Bel, colega de trabalho que entrou na repartição enquanto eu estivesse fora. Acho que no fundo eu sabia que não iria ao trabalho na quarta-feira.
À noite, ainda bastante cansada, fui visitar uma tia e fiquei lá até as 22:30. Cheguei em casa, tomei banho e deitei. Heitor tinha acabado de ler o livro sobre parto que lhe dei.
Quando consegui cochilar, virei pro lado e senti uma cólica forte. Minha bolsa estourou. Liguei pro obstetra e marcamos de ir ao hospital às 6h, caso não entrasse em trabalho de parto.
Entrei em pânico. Como assim, parir amanhã cedo?!!! Minha mala não tava pronta, o quarto dela tava sem cortina, a cômoda sem puxador... Saí andando feito louca pela casa, tremendo muito, apavorada com o que me esperava na manhã seguinte. Lembrei da minha primeira transa. Eu tremia do mesmo jeito, um frio que vem de dentro.
Comecei a pensar nos hormônios que eu tava inibindo com esse tanto de adrenalina e passei a questionar minha capacidade de passar por essa experiência. Comecei a pensar que talvez a cesária não fosse tão ruim assim e que eu não era mulher pruma tarefa como o parto natural.
Só consegui deitar depois de arrumar a mala, o berço, escrever bilhete pro Heitor (coisas a fazer no dia seguinte) e respirar muito. Cochilei um pouco e passei a sentir contrações. Heitor me ajudou a cronometrar. Eu pensava em várias coisas, que tinha que ficar calma pra não atrapalhar o processo, que qualquer mulher fica nervosa nessas horas, que eu tinha que descansar porque o batidão viria e eu precisava de energia.
Até que tudo ficou tão intenso que eu não consegui mais cochilar. Levantei, fui pra internet pesquisar intervalos de contrações. Depois fui pro chuveiro pra ver se o desconforto ficava menor.
Às 6h liguei pro obstetra, que pediu que eu esperasse um pouco mais antes de ir pro hospital. Dei por mim que estava um cado mais calma. Heitor levantou e passamos a nos preparar.
E as contrações reduziram.
Lembro de ter dito ao Heitor que nossa filha nasceria mesmo na quarta, pois com bolsa estourada não tinha outra opção. Fiquei muito aflita com essa perspectiva. Era como ir a um universo paralelo. Eu veria a carinha dela e minha vida nunca mais seria a mesma. Nessa hora vi que digerir o fato de que estava grávida, coisa tão difícil pra mim, parecia quase nada se comparado ao que estava prestes a acontecer.
O dia foi clareando e foi ficando difícil me acalmar. As contrações não aumentaram em frequência, Heitor tinha saído pra comprar absorventes e o irmão dele, médico, há muito estava preocupado pelo fato de eu não ter ido ao hospital pra induzir o parto.
Às 8h,liguei pro médico de novo e ele pediu que eu fosse ao hospital para entrar no soro (induzir o parto). Fiquei arrasada. Me sentia incapaz. Fiquei pensando em coisas que li que associam ao uso de oxitocina sintética. Fiquei obcecada em lembrar quais as consequências para a criança, ficava pensando que talvez meu útero não fosse tão sensível à oxitocina e que se bobeasse à tarde eu seria operada. Me deu pânico pensar que ficaria presa a uma mangueirinha no hospital. Fui ficando triste.
Heitor estava muito, mas muito nervoso, pessoas me ligavam o tempo todo, fui ficando zoada e acabei desligando o celular. Ensimesmei. Às vezes o Heitor me irritava, me chamando a interagir com o mundo, mas eu não queria sair de dentro de mim.
Chegamos ao hospital, eu me contorcendo, Heitor entre nervoso, contente e perdido, sorria pra todo mundo.
Já na suíte de parto, vedo as coisas, equipamentos, instrumentos, me senti um serzinho frágil. Quis colo, mas não dava pra deitar e fiquei escoradinha no Heitor dando graças aos céus que ele tava lá comigo.
A enfermeira disse que eu entraria no soro. Eu pensava que o obstetra me analisaria antes e tinha esperança de dar conta do parto sozinha. Enfim..
Entrei no soro.
As contrações ficaram fortes de novo e eu só respirava. Fui pro chuveiro, deixei o Heitor doido, dando ordens. Foi quando o Dr. Lucas chegou.
Eu só tinha 4 cm de dilatação. Tomei um pito dele, mas na verdade quase não entendi o que ele disse. Só entendi que se não tomasse coragem o parto seria cesária. Foi quando me deu na cabeça que praquilo tudo acabar logo eu teria que largar mão de esperar as coisas acontecerem. Não é à toa que isso se chama trabalho de parto.
A partir daí, a cada contração, em vez de me contrair pra me defender da dor, passei a fazer força. O Lucas já tinha aumentado a quantidade de soro, o que emendou uma contração na outra e, pra aguentar fazer força, em vez de manter uma certa compostura e ficar só respirando, passei a soltar gritos de dor.
Não sei se essa frase é minha ou de uma amiga, mas não há nada mais solitário que a dor. Heitor tava sempre perto, tentava ajudar a me apoiar, massagear, mas nada adiantava. Aquela dor só ia passar depois de eu parir.
Tenho bem marcada na cabeça uma cena em que estava de quatro debaixo do chuveiro e Heitor longe, sentado, olhando, sem poder fazer muito além daquilo pra ajudar.
Lembro de eu falar que não aguentava mais e ele respondendo que àquela altura eu tinha que tratar de parir. A essa altura eu já não pensava mais muita coisa. O quarto já nem existia. Eu só lembro de enxergar coisas num raio de 1 metro de distância de mim. Não tinha posição confortável e aquele tanto de dor me concentrou muito. Me lembro que, quando minha dilatação dobrou, pude entrar na banheira.
A partir daí lembro pouco da dor. Lembro que doía, que as contrações continuavam emendadas, mas a liberdade de movimentos na água, o calor no corpo todo, foram me relaxando de tal maneira que fui abstraindo. Me passavam pela cabeça imagens de um filme com partos na água.
De repente me dei conta que minhas mãos estavam formigando e de que não sentia minhas pernas. Precisei de ajuda pra sair da banheira, tinha a sensação de que não conseguiria andar e que iria desmaiar. Lucas me disse que o pior havia passado e que essa moleza que eu sentia era uma sedação natural, uma espécie de defesa do corpo contra a dor. Meio que não acreditei.
Ele me pediu que sentasse numa cadeira com uma bacia embaixo. Pensei que fosse algum exame que fosse fazer. Mas a enfermeira pediu que o Heitor se sentasse num banquinho atrás de mim e então entendi que era a hora. Quase comecei a rir.
E realmente o pior havia passado. Daí pra frente eu não sentia mais dor, só moleza. As contrações ficaram mais espaçadas e profundas. Parecia que ia virar do avesso de tanta pressão que as contrações faziam pra baixo.
Esse era meu foco. As contrações vinham como espasmos fortes das minhas vísceras e eu não sentia dor. Era quase fácil fazer força.
A dimensão do que tava acontecendo me veio quando toquei a cabecinha dela, ainda dentro do canal. Ela tava tão perto! Pensei que ela tava apertada e que tinha que sair logo. Fiz o máximo de força, mas as contrações iam ficando mais distantes umas das outras.
Quando ela começou a sair de deu um ardor tão diferente, não era exatamente uma dor. Era como se tivessem passado um gel daqueles que aquecem, um sensação forte de estiramento.
Vi que os médicos cochicharam, ouvi o Heitor me dizendo que eu estava indo muito bem. Me deu sono. Não sentia nada, nem alegria, nem medo, nem ansiedade. Era tudo como um filme, não parecia mais ser comigo.
Foi quando os cochichos ficaram sérios e percebi que estava demorando muito. Lucas deu uma mexida nela, pra virar, e senti dor. A última contração veio, foi embora e continuei fazendo força pra neném sair. E ela veio.
Tão pequena, com a cabeça roxa e o corpo branco. Fiquei preocupadíssima. Ela custou um cadinho a chorar. Quis levantar, mas tinha a placenta. Heitor teve que cortar o cordão às pressas. A gente tava tão besta com a cena que isso quase passou batido.
Levantei e fui pra cama ouvindo a neném chorar. Estava enrolada em um lençol verde, daqueles cirúrgicos. Quis dar o peito pra ela, mas ela não pegava. Foi me dando um desespero enorme, me sentia incapaz. Em um momento estavam duas enfermeiras enfiando meu peito na boca dela e segurando sua cabecinha contra meu peito. Senti muita dor.
Ainda estava passada com tudo, meio que não acreditando que havia dado conta de parir uma criança, que não havia fugido dessa tarefa, não pedi anestesia, não fui pra cesária. Sempre foi tão característico eu começar projetos já perdendo, não ter confiança em mim, ficar frustrada e eis que nem passou pela minha cabeça pedir uma anestesia. É como se esse parto fosse o meu também. É como se fosse me redimir de anos sem assumir responsabilidades e desafios, seguindo trilhas já abertas, sempre atrás de alguém.
Nunca me senti tão forte, tão dona de mim, quanto naquele momento. Saí de lá outra pessoa. Cheguei a pensar que calaria a boca do Barba Azul que fica na minha cabeça me puxando pra trás.
Outro dia estava amamentando e pensando em tudo isso, desde a concepção até o nascimento da Marina e penso o tanto que ela foi rejeitada antes de ser quista. Eu sei que no fundo nós queríamos que ela acontecesse, mas tivemos tanto medo em princípio, eu tive tanto medo, que me afastei dela, custei a desenvolver laços.
Passei a maior parte do tempo brigando com o Barba Azul que me impedia de curtir a gravidez. Passamos , eu e Heitor, a maior parte do tempo resolvendo questões que não poderiam seguir adiante e deu receio de que isso pudesse deixar alguma sequela na alma da minha filha. Nessa mesma linha, batizei minha filha no banheiro da clínica, pois pensava que ela precisava de um nome pra encarnar.
A vinda dela nos mobilizou de tal maneira que passamos a cuidar mais um do outro, cuidar mais de nós mesmos e a dar passos concretos a um cotidiano de gente grande, com todos os desafios, frustrações e conquistas no pacote.
Hoje, olhando a casa com móveis, recebendo gente, lembrando das conversas, da forma como planejamos gastos, como pensamos o futuro, vejo que demos passos enormes mesmo que com muita insegurança.
Mas olho pra nós com muito respeito, coisa que não conseguia fazer antes. É uma pena que o Barba Azul siga aparecendo em meus mamilos feridos, mas depois de uma noite bem dormida ele fica tão fraco.
Quando comecei a escrever essa carta o parto não me saía da cabeça. Acho que pra contrapor o Barba Azul, que me trouxe um danado dum “baby blues”. Toda vez que me frustrava com a amamentação, ou olhava pro meu corpo esquisito e dolorido, sentia um asco tão grande de mim que precisava contrapor lembrando da experiência poderosa do parto.
Hoje já não tenho tanta dor e meu corpo volta rapidamente ao normal. Tirando as olheiras quase posso dizer que estou bem. O parto já está cristalizado na minha cabeça e vou aos poucos encontrando luz em outras partes de mim, que não lembranças.
Já consigo dizer que as coisas ruins passam e me preparar para os enormes desafios que vou enfrentar nessa de, de repente, me tornar mãe.
Risíveis Amores
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Pílula de memória
Seis anos, tarzan, a árvore, a queda, o barranco, os ralados, o corte na testa, os primos assustados, o sangue no rosto......Vó! Arde, arde, arde. Nossa vó que bom que a senhora chegou. Abraço, que bom. Banho, lavar as feridas? Mas vai arder mais!
Não houve choro que desse jeito! Abraçada a mim foi me levando para dentro. Enquanto me colocava embaixo do chuveiro, me dizia que “mulher e chá você só sabe da força quando coloca em água quente”, aquela frase relacionada à imagem do meu sangue pigmentando a água marcaria pra sempre a minha jovem memória. E o desejo de ser chá preto se instalaria sem remédio em meu coração.
Não houve choro que desse jeito! Abraçada a mim foi me levando para dentro. Enquanto me colocava embaixo do chuveiro, me dizia que “mulher e chá você só sabe da força quando coloca em água quente”, aquela frase relacionada à imagem do meu sangue pigmentando a água marcaria pra sempre a minha jovem memória. E o desejo de ser chá preto se instalaria sem remédio em meu coração.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
MACHO DA VEZ - espaço para outros olhares, complementos ou até revanchismos por parte deles
Amor (de) comunista
Tá bom. Já te procurei nos lugares mais esquisitos que você possa imaginar. Numa lata de palmito, debaixo de todas as cobertas da casa, entre as bolsas vazias penduradas na parede. Agora sei que acabou. Mas se tudo se resumisse a acabar e pronto, a vida seria tão simples como a História contada pelos livros mal escritos. O acabar sempre gera a desconfiança, a esperança, a desliusão, o medo, e horas e horas pensando sozinho em qualquer boteco que apareça pela frente. Parece que o casamento é que nem o comunismo. Quase ninguém acredita mais. É, meu bem… só que o muro caiu, o partido escafedeu-se, a União Soviética inteirinha desabou. O Allende morreu, a China mudou de lado. Só a nossa querida Havana continua em pé, com todos seus defeitos e qualidades. Cuba é um casal de velhinhos numa música de Pablo Milanes. Parece impossível até, imaginar que um dia, consigamos construir um mundo mais justo e solidário, aquilo que Marx queria. Talvez um dia consigamos construir um casam… digo comunismo sem aqueles defeitos que se chamaram Stalin ou Chauchescu. Sei que a revolução é difícil. Coisa de loucos. Quase todo mundo vai dizer: é impossível! Mas em matéria de amor, me orgulho de ser um velho comunista.
a imagem é daqui
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
Game Over
Agora não adianta mais. Não me venha com domingos de calor que eu já amargurei muitas noites de frio e de chuva. Flores não vão adiantar, aviso logo - é que tive que aguentar muito lixo, pomba, rato. Nem se forem Ipês: muitas árvores podres já desabaram sobre a minha casa. Não, não aceito a luz do sol do horário de verão, tu já me deixou no escuro por demais. Calçadas largas? depois de tanto desviar de gente, de bicho, de lixo (repito), de rato (reitero) e sobretudo de exaustor de padaria soltando vapor quente e gorduroso nos pedestres? não, obrigada. Tu me oferece, a essa altura do jogo da vida, uma nota promissória? depois de me deixar sem nenhum vintém em sábados solitários e ociosos? Não, já disse, não aceito. Veja que festas, cerveja gelada, e sambas também não vão adiantar. Já te dei 3 chances e tu me deixou sem bateria para a 4ª fase.
Desculpe o desabafo. Não me leve a mal. Mas é que cansei de Copan, quero Copacabana.
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Romper. Romper é separar, separar é dividir. Ela rompeu para dividir, dividir a cama, a casa e as expectativas. Rompeu com a sua cidade e, sem pensar duas vezes, lá
estava no Aeroporto de Congonhas, malas e coração na mão. São Paulo até então era Sampa, de Caetano, boates moderninhas, nos programas de tv, Cracolândia, nos cadernos policiais.Não tinha cheiro, textura, luz, sensação. Até então, São Paulo não era.
Cruzou a cidade como um bicho ao descobrir que gaiola tem porta. E porta abre. E foi buzina britadeira viaduto esse diabo de helicóptero na cabeça judeu travesti funcionário engravatado acreditando que tem pressa pregador pregando o cristo que não segue toda essa gente tão nervosa pela rua motoboy a mil por hora aquela massa a mil por hora até criança a mil por hora pelo centro da cidade. Tudo corria frente aos olhos, enquanto os olhos, fascinados, se acostumavam a correr pela paisagem. E a cada dia, ao ganhar uma rua nova, era, pra eles, uma imagem não sabida. E cada imagem era vivência concebida: ia somando, se infiltrando, construíndo.
E se espremeu num vagão da Linha Vermelha, bebeu cerveja olhando as putas da Augusta, cantou um samba e se encontrou como pensava. Quando se viu, já não mirava mais o alto, pois era à frente que estava seu caminho. Em pouco tempo, parecia ser das ruas, aquelas veias latejantes, pulsando vida por onde quer que percorresem.
Romper é separar, separar é dividir. Ela rompeu para dividir, dividir a cama, a casa e as expectativas. Rompeu com a cidade e, sem pensar duas vezes, lá estava no Aeroporto de Congonhas, malas e coração na mão. São Paulo de então era o Cênico, na esquina com o São Pedro, o cheiro da Fagundes, na Liberdade, era o laço com os amigos, a Cracôlandia diante dos olhos marejados. Era vivência, mistura, crescimento. Ali, então, São Paulo era dela. Voltou para sua cidade e a cruzou como um bicho ao descobrir que gaiola tem porta. E porta, depois que se abre, não há mais tranca que consiga segurar.
estava no Aeroporto de Congonhas, malas e coração na mão. São Paulo até então era Sampa, de Caetano, boates moderninhas, nos programas de tv, Cracolândia, nos cadernos policiais.Não tinha cheiro, textura, luz, sensação. Até então, São Paulo não era.
Cruzou a cidade como um bicho ao descobrir que gaiola tem porta. E porta abre. E foi buzina britadeira viaduto esse diabo de helicóptero na cabeça judeu travesti funcionário engravatado acreditando que tem pressa pregador pregando o cristo que não segue toda essa gente tão nervosa pela rua motoboy a mil por hora aquela massa a mil por hora até criança a mil por hora pelo centro da cidade. Tudo corria frente aos olhos, enquanto os olhos, fascinados, se acostumavam a correr pela paisagem. E a cada dia, ao ganhar uma rua nova, era, pra eles, uma imagem não sabida. E cada imagem era vivência concebida: ia somando, se infiltrando, construíndo.
E se espremeu num vagão da Linha Vermelha, bebeu cerveja olhando as putas da Augusta, cantou um samba e se encontrou como pensava. Quando se viu, já não mirava mais o alto, pois era à frente que estava seu caminho. Em pouco tempo, parecia ser das ruas, aquelas veias latejantes, pulsando vida por onde quer que percorresem.
Romper é separar, separar é dividir. Ela rompeu para dividir, dividir a cama, a casa e as expectativas. Rompeu com a cidade e, sem pensar duas vezes, lá estava no Aeroporto de Congonhas, malas e coração na mão. São Paulo de então era o Cênico, na esquina com o São Pedro, o cheiro da Fagundes, na Liberdade, era o laço com os amigos, a Cracôlandia diante dos olhos marejados. Era vivência, mistura, crescimento. Ali, então, São Paulo era dela. Voltou para sua cidade e a cruzou como um bicho ao descobrir que gaiola tem porta. E porta, depois que se abre, não há mais tranca que consiga segurar.
domingo, 28 de novembro de 2010
Me beija com sua boca podre?
Cheguei e me recebeu aquela senhora gorda. Ela me sufocava naqueles peitos enormes de gerações amamentadas. Algo naquele cheiro me intrigava, me atraía. Não era exatamente bom: misturava urina, óleo queimado, suor, cerveja seca, um quê de esperma velho, como uma lembrança antiga do gozo que deve ter encharcado um dia aquela mulher. Eu queria me afastar, mas, sem nem saber como, cada vez chegava mais perto.
Minha vontade era chegar aos dentes dela, morder o que ela mordia. Mas eu estava ainda bem longe disso. Não entendia sequer sua voz, não decifrava seu rosto. Era estranhamente bonita, me fascinava aquele olhar torto, o mistério, o eterno clima de soslaio. Senti frio, fiquei triste, quis chamar minha mãe. A senhora veio, com aqueles dedos curtos e engordurados, me apertava, e era mais um desafio que uma carícia. Eu queria enfrentar. Queria olhar pra ela, queria não ter medo, queria eu mesma pegar aquele cheiro azedo e virar eu também matrona, meio plínio marcos, meio tia italiana de filme.
Ganhei a rua, eu queria, eu precisava chegar perto daquele submundo que é o mundo, que produz toda a miscelânea de barulhos e gentes, eu precisava me molhar no esgoto, chegar perto da boca do lobo, encará-lo de frente e por fim poder abraçar aqueles peitos grandes, colocar os meus próprios no jogo, merecer o hálito acre no meu cangote. Eu precisava, eu sabia que iria.
Me coloquei então na caminhada, tentei misturar a sola do sapato com a cor do asfalto, tentei engolir todo o cinza do mundo até conseguir ver o cor de rosa por trás do viaduto do chá. Era tudo um esforço para entender o ouvido daquele mulher, a desarmonia jam session com samba. Ela me oprimia com suas palavras, com seu silêncio, me oprimia por minha enorme ignorância e pela memória de amor que marcava todo meu corpo.
Decidi não ter mais vergonha, mais tanta vergonha. Aceitei me misturar, me embebedar, me perder. Mas quando eu chegava com os olhos vidrados de neblina, quando eu finalmente adquiria o tom de pele amarelado da fome e do delírio, ela me olhava e ria. Ria uma risada bonita, gostosa, pegava minha mão com autoridade amorosa de avó e me dizia pra deixar de besteira, esquentar logo a água do café e me achegar no seu cobertor. Eu chorava, eu queria tanto seu calor pleno, sua humanidade doentia, sua solidão.
Eu a amava? Era paixão? Medo?
Um pouco de tudo, até quando percebi, com o corpo roxo, com marcas na cara e a voz embargada, que eu mesma cheirava a suor e cerveja seca. Que eu tinha gozado, comido asfalto, me acostumado com a luz de poste escondendo idéia de lua, engolido e digerido que sonho e cotidiano funcionam como andar de bicicleta no viaduto, que liberdade tem gosto de nada, que a dor é melhor que a ansiedade do vazio. Por fim eu entendi aquele olhar de soslaio: viver é difícil, mas todo dia tem alguma coisa bonita pra deitar o olhar. Viver é toda hora, e há que se guardar água pra regar o que nasce e cresce.
Antes de virar eu também uma senhora gorda quatrocentona, preferi virar tinta colorida e ficar vermelhando um muro qualquer, viver bêbada de movimento e de eternidade, buscar a alegria na travessia do caos.
Minha vontade era chegar aos dentes dela, morder o que ela mordia. Mas eu estava ainda bem longe disso. Não entendia sequer sua voz, não decifrava seu rosto. Era estranhamente bonita, me fascinava aquele olhar torto, o mistério, o eterno clima de soslaio. Senti frio, fiquei triste, quis chamar minha mãe. A senhora veio, com aqueles dedos curtos e engordurados, me apertava, e era mais um desafio que uma carícia. Eu queria enfrentar. Queria olhar pra ela, queria não ter medo, queria eu mesma pegar aquele cheiro azedo e virar eu também matrona, meio plínio marcos, meio tia italiana de filme.
Ganhei a rua, eu queria, eu precisava chegar perto daquele submundo que é o mundo, que produz toda a miscelânea de barulhos e gentes, eu precisava me molhar no esgoto, chegar perto da boca do lobo, encará-lo de frente e por fim poder abraçar aqueles peitos grandes, colocar os meus próprios no jogo, merecer o hálito acre no meu cangote. Eu precisava, eu sabia que iria.
Me coloquei então na caminhada, tentei misturar a sola do sapato com a cor do asfalto, tentei engolir todo o cinza do mundo até conseguir ver o cor de rosa por trás do viaduto do chá. Era tudo um esforço para entender o ouvido daquele mulher, a desarmonia jam session com samba. Ela me oprimia com suas palavras, com seu silêncio, me oprimia por minha enorme ignorância e pela memória de amor que marcava todo meu corpo.
Decidi não ter mais vergonha, mais tanta vergonha. Aceitei me misturar, me embebedar, me perder. Mas quando eu chegava com os olhos vidrados de neblina, quando eu finalmente adquiria o tom de pele amarelado da fome e do delírio, ela me olhava e ria. Ria uma risada bonita, gostosa, pegava minha mão com autoridade amorosa de avó e me dizia pra deixar de besteira, esquentar logo a água do café e me achegar no seu cobertor. Eu chorava, eu queria tanto seu calor pleno, sua humanidade doentia, sua solidão.
Eu a amava? Era paixão? Medo?
Um pouco de tudo, até quando percebi, com o corpo roxo, com marcas na cara e a voz embargada, que eu mesma cheirava a suor e cerveja seca. Que eu tinha gozado, comido asfalto, me acostumado com a luz de poste escondendo idéia de lua, engolido e digerido que sonho e cotidiano funcionam como andar de bicicleta no viaduto, que liberdade tem gosto de nada, que a dor é melhor que a ansiedade do vazio. Por fim eu entendi aquele olhar de soslaio: viver é difícil, mas todo dia tem alguma coisa bonita pra deitar o olhar. Viver é toda hora, e há que se guardar água pra regar o que nasce e cresce.
Antes de virar eu também uma senhora gorda quatrocentona, preferi virar tinta colorida e ficar vermelhando um muro qualquer, viver bêbada de movimento e de eternidade, buscar a alegria na travessia do caos.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
(Des)identificação ou ode tucano-paulistana
corpo estendido no chão
calçada, cama, sem estrado
se tá vivo sei lá
deve ter bebido, vacilado
eu não: eu sou trabalhador, pago imposto
e o pedágio
minha casa, financiada,
tá imune de contágio
calçada, cama, sem estrado
se tá vivo sei lá
deve ter bebido, vacilado
eu não: eu sou trabalhador, pago imposto
e o pedágio
minha casa, financiada,
tá imune de contágio
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