terça-feira, 31 de agosto de 2010
obséquio
se você é assim, risível, mas não quer me fazer rir
e se tens daquele amor, mas não me deixa sentir
vai, danado, pede agora pra sair.
(porque tu, tu não é caveira)
*a imagem é daqui
domingo, 15 de agosto de 2010
Nunca se atrase
Carol me conheceu através de Fulana, amiga em comum de faculdade. Estávamos solteiros naquela época, o que na visão dessa nossa amiga, veio a calhar.
Embora nunca houvesse conversado com a pretendente, já sabia muito de sua vida - não por curiosidade, mas pela paciência dos mil conselhos que recebi de Fulana. Ambos éramos interioranos que agora morávamos na capital, ambos estudávamos na mesma Universidade, tínhamos a mesma idade, e compartilhávamos o demasiado gosto pelas substâncias ilícitas, o que me despertou interesse. Neste mundo transcendental, uma companhia é sempre bem-vinda.
Marcamos o primeiro encontro numa casa de sinuca que fica num bairro nobre da cidade e, portanto, regado de tóxicos e belezas artificiais. Tratamos de chegar pontualmente, mas como ela foi de carro e eu de ônibus, cheguei meia hora atrasado. O problema é que, para pessoas como nós, trinta minutos são uma eternidade e num tempo sem limites a capacidade de entorpercimento é incalculável.
Quando adentrei o bar, num breve reconhecimento da área, identifiquei algumas figuras carimbadas, às quais somos obrigados a expressar familiaridade por meio de apertos de mãos e abraços, mais por cumplicidade que por respeito. Neste processo gastei mais quinze minutos. Quando finalmente cheguei à mesa onde se encontrava Fulana, pessoas diversas e Carol, pude confirmar que de fato a sua beleza condizia com os relatos de nossa amiga, assim como seu comportamento.
Devido aos meus 45 minutos de atraso, até hoje não conheço o estado sóbrio de Carol, mas sei da sua transição para o que podemos chamar de estado futuro mais que perfeito de consciência. Nos apresentamos, trocamos duas frases e, assim que ela ganhou a partida que jogava, furei a ordem de espera, peguei um taco e prometi não dar colher de chá. Na terceira tacada - ainda sem cair bola nenhuma - enquanto examinava a mesa, ela se aproximou, pediu que segurasse o seu taco e dessa forma, me ocupando as duas mãos, me segurou o rosto e dizendo que faria agora pois não gostaria que depois fosse tarde (o que pode ser interpretado como um devaneio ou uma premonição), me lascou um beijo que conseguiu arrancar assobios e a atenção de alguns ali presentes.
No seu hálito era possível identificar o excesso de álcool, e na velocidade dos movimentos, a cocaína. Talvez essa seja a combinação mais excitante que exista, mas que de sua tradição, desperta um charme doentio que finda tantos amores.
Fiquei entusiasmado com a atitude, aproveitei para beber o tempo perdido entre uma tacada e outra, e ao término da partida já estava no processo de alteração da moralidade humana. Na minha perspectiva a noite só viria a melhorar, pois os ingredientes já estavam sendo misturados e a experiência me dizia que dali para o forno seria questão de tempo. Ah! Eu e minha leviana confiança! A noite estava prestes a adquirir o gosto amargo do inesperado.
Carol aumentou a frequência de viagens ao banheiro e o ritmo de seus gestos transparecia a causa. Pra mim aquilo era o precedente de uma tragédia, que não só se consumava frente aos meus olhos, como era inevitável que àquela velocidade o desfecho chegaria logo.
O batom não foi capaz de esconder o branqueamento dos seus lábios e o baixar das pálpebras era iminente, quando resolvi levá-la para o lado de fora a fim de tomar ar e evitar o barulho intenso. Mal demos dois passos e todo o investimento que Carol fez em uísque saiu pelas narinas e brechas no canto da boca tampada inutilmente - tudo isso sob manifestações coletivas em favor de Raul.
Sabia que a partir daquele instante as coisas só tenderiam a piorar, e com a ajuda de Fulana, nós dois pegamos um táxi em direção à casa de nossa amiga – que era mais perto. Com dificuldade pra subir as escadas, abri a porta com ela desfalecida em minhas costas e, empurrando a porta do quarto com a perna, soltei-a sobre a cama de Fulana. Por um momento contemplei sua beleza impregnada da decadência do estilo de vida que resolvera adotar. Sua calça estava respingada de vômito e os tênis inundados, e balbuciando alguma coisa os retirei com o asco natural da situação.
Aquilo se tornou um momento inédito, mesclado de insatisfação e surpresa, afinal ali estava uma moça linda em condição morimbunda, respirando com dificuldade, suja e com mal cheiro. Com certeza ela levantaria na tarde seguinte, mas havia passado muito perto da dose final naquela noite. E ali estava eu, que longe de demonstrar qualquer alteração de consciência ou espírito, contemplativo abri o guarda-roupa, o armarinho do banheiro, a geladeira e o fogão, e não encontrei nada além de dipirona.
Fulana havia me dito que estava dando um tempo. Fiquei espantado, pois havia imaginado que ao menos um femproporex encontraria ali ao lado da garrafa de Absolut, que me aguardava ansiosa. Sentei no sofá da sala, peguei um copo semi-limpo que estava no seu braço, convidei a vodka a sentar-se comigo e liguei a televisão.
Contei-lhe toda a história e ela consentiu sobre o meu ressentimento em relação a Carol. Quando meu copo esvaziou, no auge da embriaguez, levantei. Mas antes de ir embora, deixei um recado que dizia: “Desculpe-me pelo atraso.”
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
Conto necessário
Não sei exatamente qual foi a cara que fiz quando te vi. Ou melhor, quando te revi. Mais tarde, quando contei do reencontro para a Ana, e ela me perguntou qual havia sido minha reação ali na hora, não tive resposta.
Fiquei tentando reviver a cena, tentei descrever para mim mesma o que senti naquele momento, como meu corpo reagiu, se com tensão ou com desejo, ou com os dois. Queria eu poder ver minha própria cara naquele exato momento e quem sabe conseguir desvendar por meio dos meus olhos, minha pele, minha boca o que você ainda provocava em mim. Mas, a verdade é que como qualquer situação limite, não me lembro do que gostaria e deveria lembrar. Lembro apenas de alguns detalhes sem importância. Do desenho sem sentido que o vinho, já seco, fazia nas paredes da taça a minha frente, do contorno da mesa em madeira escura, da meia calça preta rasgada da menina que saia pela porta.
Ela saía e você entrava. E então eu me lembro apenas que te vi e que abaixei os olhos. Era você. Te vi, mas não queria te ver. Não podia te ver. Mas te vi. E os milésimos de segundo em que te vi foram suficientes para ver que você continuava com os mesmos olhos afiados, o mesmo ar de mistério. Que ainda mantinha o andar de soldado, a boca brilhante, convidativa. Tudo isso eu pensei ali talvez, naqueles milésimos de segundo. Não precisava de muito tempo para me lembrar do essencial de você, é verdade, ainda que essas memórias estivessem bem enterradas em algum lugar. E nem eu sabia disso, soube ali, ao abaixar a cabeça e permanecer olhando para a mesa bege com um contorno de madeira escura. E naquele momento tive medo de perder, mais uma vez, o controle.
***
Esperei alguns segundos e levantei a cabeça. Você comprava cigarros. Estava sozinho. Agora me lembro de que tinha um olhar cansado. Um ar cansado. E aí naquele momento, me vi deitada com você na cama, você de costas para mim apoiando a cabeça no meu peito, enquanto passava as mãos no seu cabelo e tentava te arrancar o cansaço. Você fechava os olhos, soltava a cabeça para trás, entreabria os lábios, suspirava, abria os olhos de novo e me dava um meio sorriso. Naquele momento não sabia se havíamos vivido isso ou não.
Não sei se o nervosismo daquele momento era porque te revia ou por que te revia sozinha. Não era um reencontro, mas um encontro meu com você, que estava alheio a minha presença. Não sabia se queria que me visse ou não. Qual dos dois seria pior? Que me visse e ignorasse ou que não me visse, e aí teríamos perdido a única chance de nos rever?
***
Voltei a abaixar a cabeça, segurava a taça vazia com as mãos, na falta de melhor coisa do que fazer com elas. Foi aí que vi seus pés parados ao lado da mesa, sem saber de onde eles surgiam, qual caminho você tinha feito do caixa até mim. Levantei os olhos e lá estava você, com o olhar incrédulo e o meio sorriso de sempre.
Você se sentou na cadeira da frente, riu. Um sorriso aberto, dessa vez, e que eu não consegui decifrar. Não consegui te dizer nada, fiquei apenas te olhando, sem retribuir o sorriso, ainda surpresa. Sim, já tinha te visto, mas a surpresa não era um fingimento, era real. E talvez ainda hoje me surpreenda o fato de que te encontrei aí. Você foi o primeiro a falar.
- O que você está fazendo aqui?
Demorei ainda um tempo para te responder. Não conseguia entender exatamente porque você havia decidido sentar-se aí na minha frente para me perguntar isso. Eu senti vergonha, me senti pega no flagra, como se eu não tivesse o direito de estar aí, como se eu tivesse violado um acordo tácito de não ir a lugares onde poderíamos nos encontrar porque um reencontro poderia ser devastador. E nenhum de nós saberia ou queria ter que lidar com isso.
Gaguejei, ergui os ombros como quem diz não-tenho-culpa, dei um sorriso displicente, soltei um suspiro.
- Tive que vir para cá.
- Teve? Mas para que exatamente...
- Ahn... Trabalho. Vim a trabalho. Me mandaram para cá.
E você continuou me olhando com os olhos afiados, meio que não acreditando. Esperando talvez que eu te dissesse o que você queria ouvir. De que eu havia ido atrás de você. Que havia comprado uma passagem de avião e aterrizado na sua cidade apenas com uma mochila e seu endereço nas mãos. Que havia então te seguido por três dias e que sabia que você sempre parava aqui para comprar cigarros, e que havia sentado aqui, tomado um vinho apenas para disfarçar que te esperava, fingindo a coincidência. Que era isso, estava te esperando, e que não te havia esquecido, que te amava, que estava disposta a mudar de país por você.
- Ainda não to acreditando que você está aqui, que estou te vendo na minha frente – você disse em voz baixa, como que pensando alto.
E então você riu de uma maneira que nunca gostava de ver você rir. Da mesma maneira que você riu quando me entregou o pen drive que eu havia te emprestado, logo ali quando terminamos tudo. E eu disse: ‘pode ficar’, porque naquele momento queria que algo meu ficasse com você, ainda que fosse algo tão imbecil quanto um pen drive. Não suportava a ideia de que você iria embora sem nada meu.
- Eu cheguei a pensar que havia esse risco da gente se encontrar, mas achei que estava viajando...
- Risco? – você disse, abrindo o maço de cigarros e colocando um entre os dedos, sem acender.
- É.
- Risco? É algo tão horroroso assim me rever? – Você me perguntou rindo, claramente tentando dissimular a raiva - Te parece arriscado? Que risco eu te ofereço?
- Não sei... E também não sei por que você está nervoso – Minha voz era defensiva.
- Não estou nervoso.
- Tá bem, então.
- Por que você está falando assim comigo?
- Eu... Eu estou falando apenas. Não estou falando assim nada.
- Podemos ir lá fora? Quero fumar.
Eu sabia que deveria te dizer não, mas não falei. Acenei para o garçom, paguei a conta.
Fazia um frio da porra na merda da sua cidade. Tinha vontade de te dizer que ainda bem que não decidi ir morar aí com você, porque não me adaptaria nunca naquela cidade estranha, fria e certinha demais.
- É sempre frio assim aqui? – Desconversei.
- Quantos dias você fica?
- Até sexta.
- Por que não fica o fim de semana?
- Passagens de domingo são mais caras e eu preciso voltar. Não tô de férias, tô aqui a trabalho.
- Sim, sim, você já falou.
- E por que você quer que eu fique?
- Não disse isso.
- Ok. Tá bom – E não consegui não soltar um riso sarcástico.
- Talvez porque eu queira sair e conversar com você. - Recuo seu, algo inesperado para mim.
- Estamos fazendo isso agora.
- Não assim sem querer. Algo programado.
- Não sei se posso... Quer dizer, posso.
- Não sabe então se quer?
Naquele momento não te entendi. Parecia até que fora você o chutado, o rejeitado, o abandonado. Eu tinha motivo para raivinhas e indiretas. Você não. Você foi quem surtou, mudou da noite para o dia e me deu um fora de perder norte, de perder a vontade de acordar, de trabalhar; de querer dormir e acordar um mês depois. Foi você que terminou porque já tinha outro esquema engatilhado – um esquema chamado Débora, que na época me surpreendeu menos pela rapidez com que você apareceu com ela do que com o fato de que ela era muito parecida comigo.
- Tenho que voltar para o hotel e trabalhar.
- Tá, mas e amanhã?
- Não posso. Na verdade, não sei. Talvez eu não queira mesmo.
- Tá bem – disse você abaixando os olhos.
- Se você quiser, podemos ir andando até o hotel, é a umas três quadras daqui.
No caminho, você me contou um pouco da sua vida. Que sua avó, bem velhinha, ainda estava viva e ainda ouvia tangos antigos. Que ainda não tinha muitas notícias de seu pai, que tampouco te importava. Que sua mãe estava bem e seu irmão estava finalmente crescendo e tomando rumo. Parei em frente à porta do hotel, não te convidei para entrar. Te dei um abraço apertado, que apertou também meu coração, e te dei adeus.
Não me lembro da sua cara e sua reação na hora, sequer se falou alguma coisa. Simplesmente virei as costas e entrei pela porta, porque não sei se suportaria resistir a um pedido ou avanço seu.
***
No meio da madrugada, lembro apenas da moça da entrada bater forte na porta do meu quarto e me dizer que alguém precisava falar comigo e não aceitava ir embora. Você então apareceu na porta do quarto antes que eu conseguisse concatenar alguma ideia. Pediu para que eu não falasse nada, apenas escutasse. Que há muito tempo sonhava com o momento em que ia finalmente poder se explicar e se desculpar. Que se culpava muito por como as coisas terminaram, por não termos mais contatos. Você estava bêbado, me abraçava e pedia desculpas repetidamente. Disse que não me amava mais, que não era isso, mas que quando se deparou comigo, muitas ideias e sentimentos vieram à tona. Disse que havia sido incapaz de lidar com a situação, que de fato arrumar outra havia sido uma fuga. Que surtou de um dia para o outro – e que na noite anterior ao término havíamos assistido a Amantes do Círculo Polar e que tinha ido dormir naquele dia pensando que nunca queria se envolver com alguém daquele jeito que aparecia no filme. Que tinha medo de se sentir assim tão dependente e apaixonado por mim. E completou afirmando que naquela noite eu não tinha transado com ele, o que achou inadmissível e uma prova de que ele gostava mais de mim do que eu dele. Foi nesse momento que o Luís, que até então só via aquilo por detrás de você, como quem ouvia um teatro do absurdo, soltou o mais sincero e sonolento “que porra é essa?”.
Também não lembro nesse momento qual foi sua reação. Ia doer demais ver sua reação. Só lembro que, ali, no meio da madrugada fria você me deixou ali, gelada, sem palavras, sem desfecho, sem rumo. E com muitas explicações para dar.
Fiquei tentando reviver a cena, tentei descrever para mim mesma o que senti naquele momento, como meu corpo reagiu, se com tensão ou com desejo, ou com os dois. Queria eu poder ver minha própria cara naquele exato momento e quem sabe conseguir desvendar por meio dos meus olhos, minha pele, minha boca o que você ainda provocava em mim. Mas, a verdade é que como qualquer situação limite, não me lembro do que gostaria e deveria lembrar. Lembro apenas de alguns detalhes sem importância. Do desenho sem sentido que o vinho, já seco, fazia nas paredes da taça a minha frente, do contorno da mesa em madeira escura, da meia calça preta rasgada da menina que saia pela porta.
Ela saía e você entrava. E então eu me lembro apenas que te vi e que abaixei os olhos. Era você. Te vi, mas não queria te ver. Não podia te ver. Mas te vi. E os milésimos de segundo em que te vi foram suficientes para ver que você continuava com os mesmos olhos afiados, o mesmo ar de mistério. Que ainda mantinha o andar de soldado, a boca brilhante, convidativa. Tudo isso eu pensei ali talvez, naqueles milésimos de segundo. Não precisava de muito tempo para me lembrar do essencial de você, é verdade, ainda que essas memórias estivessem bem enterradas em algum lugar. E nem eu sabia disso, soube ali, ao abaixar a cabeça e permanecer olhando para a mesa bege com um contorno de madeira escura. E naquele momento tive medo de perder, mais uma vez, o controle.
***
Esperei alguns segundos e levantei a cabeça. Você comprava cigarros. Estava sozinho. Agora me lembro de que tinha um olhar cansado. Um ar cansado. E aí naquele momento, me vi deitada com você na cama, você de costas para mim apoiando a cabeça no meu peito, enquanto passava as mãos no seu cabelo e tentava te arrancar o cansaço. Você fechava os olhos, soltava a cabeça para trás, entreabria os lábios, suspirava, abria os olhos de novo e me dava um meio sorriso. Naquele momento não sabia se havíamos vivido isso ou não.
Não sei se o nervosismo daquele momento era porque te revia ou por que te revia sozinha. Não era um reencontro, mas um encontro meu com você, que estava alheio a minha presença. Não sabia se queria que me visse ou não. Qual dos dois seria pior? Que me visse e ignorasse ou que não me visse, e aí teríamos perdido a única chance de nos rever?
***
Voltei a abaixar a cabeça, segurava a taça vazia com as mãos, na falta de melhor coisa do que fazer com elas. Foi aí que vi seus pés parados ao lado da mesa, sem saber de onde eles surgiam, qual caminho você tinha feito do caixa até mim. Levantei os olhos e lá estava você, com o olhar incrédulo e o meio sorriso de sempre.
Você se sentou na cadeira da frente, riu. Um sorriso aberto, dessa vez, e que eu não consegui decifrar. Não consegui te dizer nada, fiquei apenas te olhando, sem retribuir o sorriso, ainda surpresa. Sim, já tinha te visto, mas a surpresa não era um fingimento, era real. E talvez ainda hoje me surpreenda o fato de que te encontrei aí. Você foi o primeiro a falar.
- O que você está fazendo aqui?
Demorei ainda um tempo para te responder. Não conseguia entender exatamente porque você havia decidido sentar-se aí na minha frente para me perguntar isso. Eu senti vergonha, me senti pega no flagra, como se eu não tivesse o direito de estar aí, como se eu tivesse violado um acordo tácito de não ir a lugares onde poderíamos nos encontrar porque um reencontro poderia ser devastador. E nenhum de nós saberia ou queria ter que lidar com isso.
Gaguejei, ergui os ombros como quem diz não-tenho-culpa, dei um sorriso displicente, soltei um suspiro.
- Tive que vir para cá.
- Teve? Mas para que exatamente...
- Ahn... Trabalho. Vim a trabalho. Me mandaram para cá.
E você continuou me olhando com os olhos afiados, meio que não acreditando. Esperando talvez que eu te dissesse o que você queria ouvir. De que eu havia ido atrás de você. Que havia comprado uma passagem de avião e aterrizado na sua cidade apenas com uma mochila e seu endereço nas mãos. Que havia então te seguido por três dias e que sabia que você sempre parava aqui para comprar cigarros, e que havia sentado aqui, tomado um vinho apenas para disfarçar que te esperava, fingindo a coincidência. Que era isso, estava te esperando, e que não te havia esquecido, que te amava, que estava disposta a mudar de país por você.
- Ainda não to acreditando que você está aqui, que estou te vendo na minha frente – você disse em voz baixa, como que pensando alto.
E então você riu de uma maneira que nunca gostava de ver você rir. Da mesma maneira que você riu quando me entregou o pen drive que eu havia te emprestado, logo ali quando terminamos tudo. E eu disse: ‘pode ficar’, porque naquele momento queria que algo meu ficasse com você, ainda que fosse algo tão imbecil quanto um pen drive. Não suportava a ideia de que você iria embora sem nada meu.
- Eu cheguei a pensar que havia esse risco da gente se encontrar, mas achei que estava viajando...
- Risco? – você disse, abrindo o maço de cigarros e colocando um entre os dedos, sem acender.
- É.
- Risco? É algo tão horroroso assim me rever? – Você me perguntou rindo, claramente tentando dissimular a raiva - Te parece arriscado? Que risco eu te ofereço?
- Não sei... E também não sei por que você está nervoso – Minha voz era defensiva.
- Não estou nervoso.
- Tá bem, então.
- Por que você está falando assim comigo?
- Eu... Eu estou falando apenas. Não estou falando assim nada.
- Podemos ir lá fora? Quero fumar.
Eu sabia que deveria te dizer não, mas não falei. Acenei para o garçom, paguei a conta.
Fazia um frio da porra na merda da sua cidade. Tinha vontade de te dizer que ainda bem que não decidi ir morar aí com você, porque não me adaptaria nunca naquela cidade estranha, fria e certinha demais.
- É sempre frio assim aqui? – Desconversei.
- Quantos dias você fica?
- Até sexta.
- Por que não fica o fim de semana?
- Passagens de domingo são mais caras e eu preciso voltar. Não tô de férias, tô aqui a trabalho.
- Sim, sim, você já falou.
- E por que você quer que eu fique?
- Não disse isso.
- Ok. Tá bom – E não consegui não soltar um riso sarcástico.
- Talvez porque eu queira sair e conversar com você. - Recuo seu, algo inesperado para mim.
- Estamos fazendo isso agora.
- Não assim sem querer. Algo programado.
- Não sei se posso... Quer dizer, posso.
- Não sabe então se quer?
Naquele momento não te entendi. Parecia até que fora você o chutado, o rejeitado, o abandonado. Eu tinha motivo para raivinhas e indiretas. Você não. Você foi quem surtou, mudou da noite para o dia e me deu um fora de perder norte, de perder a vontade de acordar, de trabalhar; de querer dormir e acordar um mês depois. Foi você que terminou porque já tinha outro esquema engatilhado – um esquema chamado Débora, que na época me surpreendeu menos pela rapidez com que você apareceu com ela do que com o fato de que ela era muito parecida comigo.
- Tenho que voltar para o hotel e trabalhar.
- Tá, mas e amanhã?
- Não posso. Na verdade, não sei. Talvez eu não queira mesmo.
- Tá bem – disse você abaixando os olhos.
- Se você quiser, podemos ir andando até o hotel, é a umas três quadras daqui.
No caminho, você me contou um pouco da sua vida. Que sua avó, bem velhinha, ainda estava viva e ainda ouvia tangos antigos. Que ainda não tinha muitas notícias de seu pai, que tampouco te importava. Que sua mãe estava bem e seu irmão estava finalmente crescendo e tomando rumo. Parei em frente à porta do hotel, não te convidei para entrar. Te dei um abraço apertado, que apertou também meu coração, e te dei adeus.
Não me lembro da sua cara e sua reação na hora, sequer se falou alguma coisa. Simplesmente virei as costas e entrei pela porta, porque não sei se suportaria resistir a um pedido ou avanço seu.
***
No meio da madrugada, lembro apenas da moça da entrada bater forte na porta do meu quarto e me dizer que alguém precisava falar comigo e não aceitava ir embora. Você então apareceu na porta do quarto antes que eu conseguisse concatenar alguma ideia. Pediu para que eu não falasse nada, apenas escutasse. Que há muito tempo sonhava com o momento em que ia finalmente poder se explicar e se desculpar. Que se culpava muito por como as coisas terminaram, por não termos mais contatos. Você estava bêbado, me abraçava e pedia desculpas repetidamente. Disse que não me amava mais, que não era isso, mas que quando se deparou comigo, muitas ideias e sentimentos vieram à tona. Disse que havia sido incapaz de lidar com a situação, que de fato arrumar outra havia sido uma fuga. Que surtou de um dia para o outro – e que na noite anterior ao término havíamos assistido a Amantes do Círculo Polar e que tinha ido dormir naquele dia pensando que nunca queria se envolver com alguém daquele jeito que aparecia no filme. Que tinha medo de se sentir assim tão dependente e apaixonado por mim. E completou afirmando que naquela noite eu não tinha transado com ele, o que achou inadmissível e uma prova de que ele gostava mais de mim do que eu dele. Foi nesse momento que o Luís, que até então só via aquilo por detrás de você, como quem ouvia um teatro do absurdo, soltou o mais sincero e sonolento “que porra é essa?”.
Também não lembro nesse momento qual foi sua reação. Ia doer demais ver sua reação. Só lembro que, ali, no meio da madrugada fria você me deixou ali, gelada, sem palavras, sem desfecho, sem rumo. E com muitas explicações para dar.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Confissões da TPM
Sonhava que o Brasil ganhava a copa do mundo com Lúcio sendo eleito o melhor jogador, quando, de repente, fui chamado à realidade de uma maneira não muito doce:
- Arnaldo, você viu minha jaqueta preta?Arnaldo?
- Ãh...
- Arnaldo, acorda!
- Oi?
- Acorda! To atrasada e não acho minha jaqueta preta. Que merda!
- Que jaqueta preta, amor? Perguntei, ainda de olhos fechados
- Como assim que jaqueta preta? A minha jaqueta preta ué, a única que eu tenho.
Aí achei melhor abrir os olhos. Alguma coisa estava errada, afinal, ela não tinha uma única jaqueta preta.
- Você tem 5 jaquetas pretas, querida
- Claro que não! As outras não são jaquetas, são casacos.
- Mas são pretas né? você só veste preto, eu confundo...
- Quê que é? Vai reclamar das minhas roupas agora? Vai dizer que eu to gorda também, porra? Disse ela ameaçando despejar lágrimas sobre aquele rosto lindinho
Aí pensei (com meu acúmulo de 30 anos de convivência com mulheres, contando minha mãe e minhas três irmãs): lágrimas + palavrão + tá-me-chamando-de-gorda = TPM. Olhei em volta, a procura de alguma confirmação, e lá estava ela: a cartela de pílulas vazia em cima do criado mudo.
- Claro que não, querida. Suas roupas são lindas e você não está gorda. (sim, eu prezo pelo meu casamento)
- Hum, sei. Então levanta dessa cama e me ajuda a procurar.
- Mas eu realmente não sei de que jaqueta você está falando
- Caralho, putaquepariu, a minha jaqueta preta, porra!
Fechei os olhos e tentei imaginar qual das 5 jaquetas (ou casacos) ela queria. Não deu muito certo. Abri o armário e resolvi tentar na sorte.
- É essa?
- Não. Isso é um casaco.
- e essa?
- Isso não é preto, é azul marinho!
- hum...essa?
- Não! Essa é horrorosa, nem uso mais.
- ok...me ajuda então..como ela é?
- porra Arnaldo..é a jaqueta que eu mais uso, não é possível. Aquela que eu comprei na Zé Paulino. lembra?
- Er...Não.
Não vou nem dizer os palavrões que ela gritou nesse momento, esse texto tá começando a ficar muito sujo. Na verdade era eu que tava perdendo a paciência. Tava louco pra dizer “calma! É só uma TPM”. Mas não dá. Ia chover discurso feminista com palavrão pra cima de mim.
- Cara, vc ta me deixando muito irritada. Sério mesmo. Como é que você não sabe de que jaqueta eu to falando? (desabafou, enquanto jogava todas as roupas – pretas- pra fora do armário)
- É, vc tá muito irritada mesmo. Meio estranho, não acha ?
- O quê que é estranho?
- Você, ué. Irritada desse jeito. Normalmente você não é assim...
- como assim? (agora cavucando o armário enlouquecidamente)
- ah...você só fica irritada de vez em quando
- de vez em quando, quando?
- ah...uma vez por mês....
E aí ela achou a jaqueta preta no meio do armário e caiu na gargalhada. Isso mesmo, caiu na gargalhada. Na verdade ela sabia que eu sabia que ela tava de TPM e que eu tava com medo de falar que sabia. É, ela sabia. E o humor dela mudou completamente. Me jogou a jaqueta na cara com um sorrisinho safado na boca.
- Ta aqui ó. Olha bem e vê se nunca mais esquece. E pode dizer que eu to de TPM. Dessa vez não vou dizer nada... Desde que você me ajude a achar minha blusa preta, não to gostando dessa aqui.
- …
- Rá! to zuando.
(e eu confesso que continuei não lembrando dessa jaqueta, mas fica aqui entre nós).
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