Cheguei e me recebeu aquela senhora gorda. Ela me sufocava naqueles peitos enormes de gerações amamentadas. Algo naquele cheiro me intrigava, me atraía. Não era exatamente bom: misturava urina, óleo queimado, suor, cerveja seca, um quê de esperma velho, como uma lembrança antiga do gozo que deve ter encharcado um dia aquela mulher. Eu queria me afastar, mas, sem nem saber como, cada vez chegava mais perto.
Minha vontade era chegar aos dentes dela, morder o que ela mordia. Mas eu estava ainda bem longe disso. Não entendia sequer sua voz, não decifrava seu rosto. Era estranhamente bonita, me fascinava aquele olhar torto, o mistério, o eterno clima de soslaio. Senti frio, fiquei triste, quis chamar minha mãe. A senhora veio, com aqueles dedos curtos e engordurados, me apertava, e era mais um desafio que uma carícia. Eu queria enfrentar. Queria olhar pra ela, queria não ter medo, queria eu mesma pegar aquele cheiro azedo e virar eu também matrona, meio plínio marcos, meio tia italiana de filme.
Ganhei a rua, eu queria, eu precisava chegar perto daquele submundo que é o mundo, que produz toda a miscelânea de barulhos e gentes, eu precisava me molhar no esgoto, chegar perto da boca do lobo, encará-lo de frente e por fim poder abraçar aqueles peitos grandes, colocar os meus próprios no jogo, merecer o hálito acre no meu cangote. Eu precisava, eu sabia que iria.
Me coloquei então na caminhada, tentei misturar a sola do sapato com a cor do asfalto, tentei engolir todo o cinza do mundo até conseguir ver o cor de rosa por trás do viaduto do chá. Era tudo um esforço para entender o ouvido daquele mulher, a desarmonia jam session com samba. Ela me oprimia com suas palavras, com seu silêncio, me oprimia por minha enorme ignorância e pela memória de amor que marcava todo meu corpo.
Decidi não ter mais vergonha, mais tanta vergonha. Aceitei me misturar, me embebedar, me perder. Mas quando eu chegava com os olhos vidrados de neblina, quando eu finalmente adquiria o tom de pele amarelado da fome e do delírio, ela me olhava e ria. Ria uma risada bonita, gostosa, pegava minha mão com autoridade amorosa de avó e me dizia pra deixar de besteira, esquentar logo a água do café e me achegar no seu cobertor. Eu chorava, eu queria tanto seu calor pleno, sua humanidade doentia, sua solidão.
Eu a amava? Era paixão? Medo?
Um pouco de tudo, até quando percebi, com o corpo roxo, com marcas na cara e a voz embargada, que eu mesma cheirava a suor e cerveja seca. Que eu tinha gozado, comido asfalto, me acostumado com a luz de poste escondendo idéia de lua, engolido e digerido que sonho e cotidiano funcionam como andar de bicicleta no viaduto, que liberdade tem gosto de nada, que a dor é melhor que a ansiedade do vazio. Por fim eu entendi aquele olhar de soslaio: viver é difícil, mas todo dia tem alguma coisa bonita pra deitar o olhar. Viver é toda hora, e há que se guardar água pra regar o que nasce e cresce.
Antes de virar eu também uma senhora gorda quatrocentona, preferi virar tinta colorida e ficar vermelhando um muro qualquer, viver bêbada de movimento e de eternidade, buscar a alegria na travessia do caos.
domingo, 28 de novembro de 2010
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
(Des)identificação ou ode tucano-paulistana
corpo estendido no chão
calçada, cama, sem estrado
se tá vivo sei lá
deve ter bebido, vacilado
eu não: eu sou trabalhador, pago imposto
e o pedágio
minha casa, financiada,
tá imune de contágio
calçada, cama, sem estrado
se tá vivo sei lá
deve ter bebido, vacilado
eu não: eu sou trabalhador, pago imposto
e o pedágio
minha casa, financiada,
tá imune de contágio
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